O avanço da medicina reprodutiva tem desafiado conceitos
estabelecidos sobre vida, morte e família. Entre as possibilidades trazidas por
essa área da ciência, uma das mais sensíveis e debatidas é a reprodução
assistida post mortem — a técnica que permite a concepção de um
filho mesmo após a morte de um dos genitores.
A prática é permitida no Brasil, mas segue regras específicas e
rígidas. De acordo com a Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de
Medicina (CFM), a reprodução após a morte só pode ocorrer se
houver autorização expressa e registrada em vida para o uso do
material genético (óvulos, espermatozóides ou embriões) congelados
anteriormente.
A seguir, o presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), o médico especialista Dr. Álvaro Cecchin, explica seis pontos fundamentais sobre o tema:
1. Como funciona a reprodução assistida após a morte?
Trata-se do uso de óvulos, espermatozóides ou embriões previamente
congelados com o objetivo de obter uma gravidez após o falecimento de um dos
membros do casal. Para que o congelamento ocorra, é necessário o preenchimento
de um termo de consentimento informado no início do tratamento, necessariamente
antes da coleta de óvulos ou espermatozoides ou da formação dos embriões, na
qual a pessoa (ou o casal) define o destino do material biológico em caso de
morte.
A técnica escolhida depende do material disponível:
- Quando o procedimento é feito com sêmen congelado, pode-se
usar inseminação intrauterina ou fertilização in vitro (FIV);
- Já no caso de óvulos congelados, a opção obrigatoriamente será a FIV.
2. É possível realizar o procedimento quando a mulher é a
falecida?
Sim. Embora a Resolução do CFM não trate diretamente desse cenário, o entendimento jurídico vigente considera essa possibilidade com base nos princípios constitucionais de igualdade de gênero. Nesses casos, o procedimento pode ser realizado por meio da chamada gestação de substituição ou útero solidário — ou seja, com o uso de um útero de outra mulher. A cedente temporária do útero deve, preferencialmente, ser parente consanguínea de até quarto grau de um dos parceiros. Em casos fora desse padrão, será necessária autorização do Conselho Regional de Medicina.
3. A técnica é permitida por lei — mas exige consentimento
prévio
Segundo o CFM, é necessário que o casal assine um documento autorizando o uso do material biológico criopreservado em caso de morte. Sem esse consentimento prévio, a realização do procedimento é vedada. “Trata-se de uma exigência legal e ética. Sem esse registro, os conselhos regionais de medicina podem negar o pedido, mesmo que exista o desejo de dar continuidade à família”, explica Dr. Álvaro.
4. A ausência de documentação pode gerar impasses jurídicos
Sem o consentimento registrado, o destino de embriões e gametas pode se transformar em disputa judicial envolvendo familiares, clínicas e até o Estado. “Já houve decisões judiciais que permitiram o uso do material, mas a falta de uma norma legal específica abre margem para diferentes interpretações”, diz o médico.
5. Os filhos gerados após a morte enfrentam lacunas legais
Do ponto de vista do direito sucessório, o reconhecimento como herdeiro do filho concebido após a morte de um dos pais é uma das questões mais importantes a serem abordadas. Entretanto, o termo de consentimento informado pelo casal ou pela pessoa antes de realizar o congelamento define qual será o destino do óvulo, espermatozoide ou embrião. A judicialização será necessária se houver uma mudança de desejo daquilo que foi previamente consentido.
6. O procedimento levanta questões éticas e emocionais
Mesmo quando legalmente permitido, o uso do material genético após a morte provoca dúvidas. “É ético gerar uma vida sem que um dos pais tenha plena ciência ou participação nessa decisão? Como essa criança será acolhida emocionalmente? Essas são reflexões que não podem ser ignoradas”, aponta o presidente da SBRA. O apoio psicológico para as famílias é recomendado.
7. Responsabilidade e afeto: quando a técnica se transforma
em gesto de amor
Apesar dos desafios, a reprodução assistida post mortem pode
ser uma forma legítima de concretizar o desejo de parentalidade. “Com
planejamento, consentimento e acompanhamento adequado, o procedimento pode
representar um gesto de continuidade e amor. Mas precisa ser feito com
responsabilidade e dentro dos limites legais e éticos sempre antes de iniciar
os procedimentos de congelamento”, conclui Dr. Álvaro.

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