Em países com mais ou menos riqueza,
desde que se viva com razoável distribuição de renda e oportunidades sociais,
vive-se em paz. Não é o nosso caso. No Brasil, vivemos espantosas
dessemelhanças. Somos algo assim como dois povos, um de costas para o outro, em
uma mesma pátria.
Tornamo-nos um lugar de conflitos. Já
banalizados, os fatos estão fartamente estampados na mídia; não obstante,
provocam pouco interesse. Só quando explosões conflituosas são feitas em
espetáculo midiático, fala-se, e aí com surpresa, medo e indignação, da
agressão caótica que constrange.
Ora, a surpresa é hipócrita e a
indignação é cínica. Para olhos de querer ver, a condição de brutal exploração
na qual se desenvolveram as relações sociais brasileiras tem longa e sabida
história e não poderia resultar noutra coisa que não fossem a violência e o
medo que desconfortam.
Nessas ocasiões, muitos pedem
abertamente por punição (e não tão poucos sugerem extinção) aos imputados como
bandidos. Essa “proposição” é organizada por parte substancial da mídia, aquela
popularesca que vende discursos de bravata a gente ignorante, odienta e
justiceira.
A questão é mais complexa do que o
encarceramento geral, ou mesmo que a eliminação de alguns. Afinal, já somos
campeões de ambas as coisas. Toda consciência sensata sabe que o Brasil tem que
compor o seu nunca realizado contrato de convivência e nele há que incluir os
deixados à margem.
Se olharmos a geografia dos excluídos:
favelas, morros, alagados, palafitas, periferias, quebradas, veremos os pobres,
os filhos dos escravizados, dos indígenas aculturados, dos imigrantes
malogrados; veremos os migrantes: os boias-frias, os sem-terra, os sem-teto;
veremos os sujeitos produzidos e reproduzidos nessas circunstâncias expulsoras.
Criamos esta nação de miséria. A essa
nação miserável foi imputada, ademais da responsabilidade por sua condição, a
condição de responsável pelas circunstâncias históricas que lhe aniquilou
recursos e chances, como se ela fosse voluntária da própria pobreza. Evidente,
em se pensando e agindo assim, assim persistirão os efeitos desse desajuste.
Os aparatos de repressão até contêm,
mas não solucionam a pressão dos excluídos. Já não há alternativa que não seja
admitir a existência e reconhecer, ainda que a contragosto, o direito de
existir de todos. E existir é, ou há de ser, viver dentro do mínimo considerado
civilizado que a sociedade tem condições – logo, obrigação ética – de
proporcionar.
Proporcionar não como concessão de
classe privilegiada, mas como contrato entre cidadãos iguais. Dos nomeados
contratualistas, Thomas Hobbes (1588-1679) faz o elogio da autoridade, mas
relaciona condições para o humano sair do estado de natureza e viver sob a
ordem de um contrato social. Conforme O Leviatã (Os Pensadores, Abril
Cultural):
“A diferença entre um e outro homem não
é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela
reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar” (p. 75). “A
questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples
natureza, na qual todos os homens são iguais” (p. 91).
Ora, este é o sentido do contrato
social, ou do abandono da vida bruta porém igualitária, para investir na vida
comum em harmonia: segurança e condições de igualdade: “Que ao iniciarem-se as
condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não
aceite seja também reservado para qualquer dos outros” (p. 92).
O Estado é uma
invenção dos homens para possibilitar-lhe consensualmente uma existência segura.
“Por segurança não entendemos aqui uma simples preservação, mas também todas as
outras comodidades da vida” (p. 200). Aos que, no Estado brasileiro, gozam de
privilégios, é já passada a hora de ceder um tanto, para haver paz
Por bem ou por
mal, todos querem – com o direito de querer – a sua porção das tantas coisas
boas que este país oferece. Os excluídos podem buscar legitimamente o que
Hobbes nomeia estado de guerra: “Numa tal situação, não há sociedade. E a vida
do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (p. 76). Estamos
advertidos.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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