No Recife (PE), quando a Justiça processa um
acusado de cometer um crime previsto na Lei Maria da Penha, as
características de agressores e agredidos são tão comuns que é possível
traçar um perfil dos envolvidos. A mulher tem baixa renda e frequentou a
escola por pouco tempo. O homem é, na maior parte das vezes, companheiro
(ou ex) da mulher agredida, e está sendo processado por crime de ameaça. Os
relacionamentos têm duração média de 10 a 30 anos e geraram filhos.
O perfil consta da pesquisa “Alternativas
penais e a Lei Maria da Penha: um diálogo essencial”, divulgada pela
professora de criminologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Marília Montenegro, no 2º Fórum Nacional de Alternativas Penais, evento que
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu semana passada em Salvador
(BA).
Ao longo de 2013, a professora acompanhou os
processos judiciais relacionados à Lei Maria da Penha e ouviu as mulheres
que representavam o chamado polo passivo das ações penais de violência
doméstica na capital pernambucana. Nos relatos que ouviu, a pesquisadora
descobriu que as mulheres eram vitimizadas desde antes do ato da agressão
física até muito tempo depois da prisão do agressor, tanto com violência
física quanto com violência psicológica. Um dos primeiros casos que Marília
Montenegro acompanhou foi o de uma mulher cujo marido morreu tragicamente
após ser preso pela Lei Maria da Penha.
De acordo com a professora, a vítima da
violência estava angariando fundos para pagar a fiança do companheiro,
preso dias antes, quando o homem foi assassinado durante uma rebelião no
presídio Aníbal Bruno, no Recife. Quando a mulher chegou ao presídio,
entrou em desespero ao ver os filhos dela e a mãe do seu ex-companheiro
responsabilizando-a pela morte do homem. “Quando a conheci, ela me dizia
‘eu matei ele’. Eu respondi ‘não, quem matou foi o Estado de Pernambuco’.
Então imagine o peso dessa mulher que mora com a sogra, que tem seus filhos
e foi buscar o corpo do seu companheiro no sistema prisional pernambucano”,
afirmou a pesquisadora.
A situação de fragilidade social das mulheres
fica evidenciada nos trechos de depoimentos das vítimas à polícia, conforme
a pesquisadora extraiu dos termos circunstanciados aceitos pelo Ministério
Público para iniciar o processo de violência doméstica nos Juizados
Especiais Criminais. Sem saber ler ou escrever, muitas vítimas narram
episódios de maridos bêbados que as agridem com brutalidade, em crises de
ciúmes ou por não aceitar o fim da relação. Quando os casos chegam aos
juizados especiais criminais, é comum as mulheres mudarem as narrativas em
favor do agressor, de acordo com os relatos coletados em audiências de
conciliação presenciadas pela pesquisadora e pelos seus colegas do Grupo
Asa Branca de Criminologia. Em um deles, a vítima acabou por perdoar o
agressor quando este concordou em se tratar do alcoolismo.
Condenações – O resultado é
que, em muitos casos, os processos penais acabavam arquivados por falta de
provas. Ao final dos julgamentos acompanhados na pesquisa, apenas 38% dos
réus foram condenados – destes, apenas 33% tiveram de cumprir pena na
prisão. Mesmo assim, apenas 15% desses condenados ao regime fechado não têm
a pena privativa de liberdade convertida em uma pena restritiva de direitos
(prestação de serviços à comunidade) ou suspensa condicionalmente, por um
instituto chamado “sursis simples”.
Humanização – De acordo com
a professora Marília Montenegro, não necessariamente as mulheres que levam
seu conflito à Justiça exigem a prisão do homem que as agrediu ou ameaçou.
Em muitos relatos analisados na pesquisa, as vítimas vão à Justiça para
pedir uma separação, com partilha de bens e pedido de pensão alimentícia –
em um deles a mulher afirmou ao promotor público que gostaria apenas de um
pedido de desculpas público do seu companheiro. “A ofendida olhou para o
conciliador e, sem titubear, afirmou: ‘eu só quero que ele me peça
desculpas, aqui na frente do senhor Doutor e da Justiça brasileira, e que o
senhor coloque isso no papel. Para mim isso basta! Depois de tudo que eu
falei aqui para vocês eu já estou aliviada'. Ele teve que ouvir tudo, acho
que foi a primeira vez, depois de mais de 25 anos vivendo juntos, que ele
foi obrigado a ouvir tudo", relatou a pesquisadora.
Novo tratamento - Com tantas
demandas diferentes da prisão, a conclusão de Marília Montenegro é que todo
o sistema de Justiça precisa humanizar o tratamento dispensado a mulheres
vítimas de violência doméstica, sobretudo após o advento das audiências de
custódia em todo o país. “A Lei Maria da Penha tem de ser repensada a
partir das audiências de custódia, que é um instrumento importantíssimo,
mas precisamos da sensibilidade de magistrados, promotores e defensores
públicos”, afirmou a estudiosa, que teme que o excesso de trabalho prejudique
a análise pormenorizada dos diferentes tipos de crimes apresentados nessas
audiências.
Ela sugere um possível aprimoramento. “O
Judiciário pode atuar numa grande parte, mas algumas medidas que poderíamos
pensar para a Lei Maria da Penha, como (aplicar) a Justiça Restaurativa,
precisaria realmente de alteração legislativa. Atualmente, a conciliação e
a suspensão condicional do processo (que permitiria a interrupção do
processo enquanto o réu cumpre medida protetiva) foram alternativas
afastadas em julgamento do Supremo Tribunal Federal. Passados 10 anos da
lei, é tempo de pensar em aprimoramentos. Alguns o próprio Judiciário pode
fazer, dentro da audiência de custódia. Em outros casos, precisaremos de
alteração legislativa“, afirmou a professora Marília Montenegro.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias
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