Onde
há poder há resistência, mesmo nas microrrelações de poder (Foucault). Quando
não concordamos com um determinado governo, nada mais legítimo que protestar (e
desejar sua mudança pela via democrática). Mas é de se lamentar quando a luta
do povo (ainda que hercúlea) fica pela metade. Se sabemos (pela história e
pelos indicadores sociais) que todos os governos fazem sempre praticamente a
mesma coisa (preservação dos interesses das classes sociais dominantes, ou
seja, das relações de domínio e de exploração, incluindo anomalamente muitas
vezes a cleptocracia - a ladroagem crua e nua), nossos protestos não deveriam
ser dirigidos apenas contra o governo plantonista (do PT no plano federal e do
PSDB em alguns estados: SP, PR, GO, MS e PA), sim, contra o sistema de
dominação que é cruel no Brasil: em 1960 nosso Gini (índice que mede a
desigualdade) era de 0,50; chegou a 0,64 em 1988 (fruto da ditadura) e voltou
para 0,51 em 2014 (número que significa extrema desigualdade). Os países
europeus, para se ter uma ideia, possuem Gini médio de 0,30; os EUA, de 0,45.
Somos
um país extremamente desigual e severamente cleptocrata (porque dominado pelo
patrimonialismo, pela "compra" do poder político pelo poder econômico
e pela roubalheira generalizada). Quando o poder jurídico aperta o controle do
poder político-econômico (em momentos raros), todos os partidos
"comprados" pelo dinheiro se aliam e mandam o povo às favas. No dia
5/11/14, a anterior CPI da Petrobras (que morreu de anemia) votava
requerimentos para quebrar o sigilo das empreiteiras e convocar larápios da
roubalheira. PT e PSDB fizeram um "acordão" e impediram qualquer
medida que pudesse buscar a verdade. Os partidos estão se lixando para a
população, quando atuam para salvar a pele deles e dos que os financiam.
As
redes sociais prometem mais duas grandes manifestações populares (13 e 15 de
março). Fico feliz quando vejo o povo de uma república cleptocrata (governada
por ladrões poderosos) indo para as ruas. Mais ainda quando a manifestação se
legitima pela ausência de violência. Vence-se, nesse caso, a inércia e o
comodismo (assim como a servidão voluntária, como dizia Boétie). Expressão de
que somos seres sociais e também políticos (Aristóteles). É crucial ter
consciência de que numa república de roubalheiras diárias como a nossa, jamais
teremos mudanças sociais e melhoras na democracia sem a participação popular. O
consenso popular diz que os partidos políticos não representam os interesses
gerais (Rousseau está morto!). Estão "vendidos" ao poder econômico
(sobretudo via financiamento das caríssimas campanhas eleitorais).
Poder
político e poder econômico, desde o nascimento do Estado moderno (na Inglaterra
no século XVII; na França, no século XVIII, quando a burguesia ascende ao
poder), fundiram-se (para a preservação dos seus poderes e privilégios). O
aposto do poder político é o poder jurídico (polícia, ministério público,
juízes, tribunais etc.), que funciona precariamente (porque não temos aqui o
império da lei).
As
classes sociais dominantes, de qualquer modo, não dominam apenas por meio do
Estado (que é manobrado e manipulado pelos reais detentores do poder), senão
também por outras instâncias de domínio (como igrejas, escolas, meios de
comunicação etc.) e pelos consensos em torno dos seus valores. Antes da construção
do Estado brasileiro (1822), as classes dominantes (desde o feudalismo no solo
português e durante todo o colonialismo - 1500-1822) exerciam o poder por meio
de várias instâncias (econômica, política, jurídica, eclesiástica, valores
difundidos na consciência coletiva etc.). Com o nascimento do Estado alguns
poderes lhe foram canalizados (sobretudo o do propalado uso legítimo da força),
mas a sociedade civil continua com suas tradicionais relações de poder
(patrão-empregado, igrejas, mídias, marido-mulher etc.). Muita coisa já mudou
(desde o feudalismo dos nossos ancestrais), mas isso não significa que as
alterações já terminaram. A revolução, na verdade, apenas começou (Jaime
Osorio, El Estado en el centro de la mundialización: 33).
O
governo não passa da manifestação visível do Estado (é sua expressão mais
escancarada). Por isso que é mais fácil contestá-lo. Mas o que ignoramos
normalmente é o lado invisível desse mesmo Estado, que é a síntese das relações
de poder e de domínio de classes (J. Osório, citado). O Estado faz parte de
toda essa engrenagem de produção e reprodução das posições de poder (que
disseminam e perpetuam as desigualdades). Esse é o nó que temos que desatar (ou
o Brasil nunca sairá do atoleiro em que se encontra desde que foi descoberto).
Os
indicadores sociais mostram evoluções (IDH em 1980 de 0,55, contra 0,72 em
2011; no mesmo período a expectativa de vida passou de 62,5 anos para 73,5; a
taxa de alfabetização subiu de 74,5 para 90,4; a escolaridade saiu de 2,6 anos
para 7,2; a renda per capita cresceu de 7.310 dólares para 10.200 - veja L. C.
Bresser-Pereira, A construção política do Brasil: 375), mas
exageradamente lentas. O descompasso entre a realidade e a expectativa geral é
brutal. Pior: a frustração aumenta com as centenas de percalços intermitentes
(inflação alta, desemprego subindo, cleptocracia instalada no poder, corrupção
endêmica, desigualdade sistêmica, violência epidêmica, justiça morosa, ausência
do império da lei e por aí vai). As massas têm motivos de sobra para se
rebelarem. Mas nessas horas o poder econômico dominante se esconde e deixa o
"abacaxi" apenas nas mãos do poder político. E o povo acha que é o
poder político (o visível) que vai resolver seu problema, ignorando que ele foi
"cooptado" pelo poder econômico dominante (que é o grande responsável
pela produção e reprodução das desigualdades, pela exploração dos dominados -
parasitismo -, pela divisão indevida do patrimônio público - patrimonialismo -,
pela "compra" do poder político - roubo da democracia cidadã -, pela
roubalheira do erário público - cleptocracia etc.).
Luiz Flávio Gomes - Jurista e Professor
Nenhum comentário:
Postar um comentário