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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Projeto investiga a existência do fenômeno "Epidemia da Solidão" no Brasil

A pesquisa, que teve uma fase qualitativa e uma quantitativa, mapeou a solidão no país antes e durante a pandemia apontou, a partir de entrevistas com milhares de pessoas das 5 regiões do país, que temos um quadro semelhante ao que, em outros países, foi cha-mado de Epidemia da Solidão. A população jovem é o epicentro desta epidemia


Um grupo de estudos coordenado pelo escritor, consultor e palestrante em desenvolvimento socioambiental, Celso Grecco, acaba de lançar o Projeto Solidão, cujo objetivo é identificar em que grau a solidão vem afetando os brasileiros. Para isso foi realizada uma pesquisa de mercado com milhares de pessoas, em todo o país, a fim de reconhecer o problema; entender sua relevância e impacto na sociedade e na saúde pública; e desenvolver ações que despertem para a importância do tema, gerando debates que resultem em propostas efetivas com o intuito de enfrentar a questão.

O Projeto Solidão está intrinsecamente relacionado ao livro "A Decisão De Que O Mundo Precisa", escrito por Grecco. O coordenador do grupo de estudos lembra que ao pesquisar temas a fim de fundamentar a tese proposta em seu livro, - de que vivemos em mundo pouco solidário, onde o culto ao individualismo gera transtornos individuais e sociais - deparou-se com o conceito de "Epidemia da Solidão", uma espécie de isolamento social pré-pandemia a que as pessoas vinham se submetendo.

O conceito refere-se a uma série de pesquisas e estudos feitos em diversos países, apontando a solidão como consequência de um mundo cada vez mais acelerado e gerador de angústia e infelicidade. Ao se deparar com a "Epidemia da Solidão", Grecco acreditou se tratar de um problema que assolava também os brasileiros, mas a falta de estudos a respeito dificultava a confirmação. Para preencher essa lacuna, surgiu o Projeto Solidão. "A motivação da pesquisa foi aprofundar uma pista que começa a nos dar muitas explicações interessantes sobre o comportamento e sentimentos dos brasileiros", explica.


Os setes espectros da solidão

A primeira fase do projeto, qualitativa, consistiu em uma série de entrevistas com especialistas como psicólogos, psiquiatras e neurologistas, entre outros profissionais da saúde mental, além de pesquisa de dados secundários. Posteriormente foram feitas 60 entrevistas individuais com pessoas com idade entre 16 e 75 anos na cidade de São Paulo, moradoras de diferentes regiões e de distintas classes sociais.

Nesta etapa, o estudo identificou sete principais razões (as mais citadas) que trazem um estado de solidão, diferente de depressão, chamadas no projeto de espectros. São eles: ansiedade de performar; irrelevância; inadequação; abandono; redes sociais; tempo e espaço; e insegurança.

A ansiedade de performar está fortemente relacionada à autossuficiência como valor e à independência como sinônimo de liberdade. Nesse sentido, qualquer tipo de ajuda é considerada fraqueza. Durante a pesquisa, o grupo de estudos colheu depoimentos de um número expressivo de pessoas que afirmaram cobrar-se excessivamente para realizar objetivos e projetos pessoais.

A irrelevância é associada a um sentimento de invisibilidade e descartabilidade. "Pelos depoimentos colhidos, percebe-se que as pessoas se sentem frustradas por não se sentirem importantes, e diante da competitividade do mundo atual, não conseguirem deixar sua marca, sentindo-se frequentemente menos preparadas do que seus pares", constata o grupo de estudos responsável pelo Projeto Solidão.

A inadequação tem suas raízes no sentimento de não pertencimento a nenhum grupo determinado. Conforme as informações coletadas nas entrevistas, trata-se de um espectro fortemente ligado às minorias. "Se na esfera coletiva, fala-se tanto de pluralidade e diversidade, em âmbito pessoal constata-se que as pessoas ainda encontram dificuldades na afirmação de suas singularidades", afirma o grupo de estudos.

Sobre o abandono, entende-se que a demanda está relacionada, primeiramente, à ausência da presença calorosa. Isso é sentido mais fortemente pelos idosos, que se veem como um peso para a família. Em um segundo momento, depreende-se uma relação entre pais e filhos atravessada pela tecnologia. "É o que denominamos 'lar, tecno lar', em que cada membro da família tem seus olhos voltados apenas para a tela de seus equipamentos eletrônicos, o que precariza o cuidado parental”, explica o grupo de estudos.

As redes sociais por sua vez apresentam um caráter ambíguo, sendo compreendidas pelos entrevistados como fonte de sofrimento e de alívio. "Trata-se tanto de um lugar para se comparar e sofrer como de um lugar de procura e encontro", afirma o grupo de estudos.

Já o espectro tempo e espaço aparece vinculado à imposição do imediatismo, que imprime essa nova relação com o tempo. Conforme o estudo, os entrevistados sentem uma exigência constante por se atualizarem, a fim de acompanhar o ritmo imposto pelo mundo digital. Desse modo, encontram-se sempre em estado de alerta, pois necessitam estar prontos para dar respostas rápidas aos desafios impostos pela atualidade.

Por fim, a insegurança, que é impulsionada pelas ameaças de se viver em grandes centros urbanos. Os entrevistados constantemente relataram medo da violência (assaltos, agressões no trânsito etc.) e da vulnerabilidade institucional, ou seja, estarem desamparados no que diz respeito à saúde, à educação, ao emprego etc.


Segunda etapa - Pesquisa quantitativa

Com o tema mapeado e as principais razões da solidão identificadas, o grupo de estudos partiu para a pesquisa quantitativa, com o intuito de entender como a população brasileira era afetada por cada espectro. Para isso, entrevistaram, entre 6 de fevereiro e 12 de fevereiro deste ano, 2010 pessoas – com 18 anos ou mais - em todas as regiões do país.

A pesquisa levou em conta as seguintes variáveis: gênero, idade, estado civil, filhos, grau de escolaridade, região do país e classe social.

Os dados mais relevantes levantados pela pesquisa quantitativa apontaram a população jovem, na faixa etária dos 18 aos 34 anos, no epicentro dos espectros, notadamente no referente à ansiedade de performar. Quando os entrevistados foram questionados se costumavam se cobrar demais para realizar objetivos e projetos pessoais, a maior parte (43,5%) respondeu que sempre fazia isso e outros 35% responderam que às vezes. Somente 8,3% das pessoas que participaram do levantamento afirmaram nunca ter se pressionado por resultados. "A ansiedade de performar é o item que foi reconhecido como causador de maior angústia e, assim, mostra-se como a raiz dos demais espectros", diz o grupo de estudos.

Outro ponto importante da pesquisa quantitativa está relacionado ao espectro inadequação, destaque entre os mais jovens e menos escolarizados. Ao serem perguntados se sentiam que ninguém os entendia, 50,8% dos jovens disseram que “às vezes”, assim como 50,9% daqueles que estudaram até o 4º ano do ensino fundamental. "Com essas respostas, inferimos que a educação é importante instrumento de integração social, condição para participar das oportunidades da vida e a falta dela está ligada ao sentimento de invisibilidade social", afirma o grupo de estudos.

O espectro abandono também foi sentido com mais ênfase entre os entrevistados mais jovens. A porcentagem de respostas afirmativas em relação à pergunta "Você sente falta de companhia?", tendeu a ser maior entre os entrevistados de 18 anos a 24 anos e entre 25 anos e de 34 anos.  Na primeira faixa, mais de 60% disseram que às vezes se sentiam solitários. Na segunda faixa, mais de 50% declararam isso.

No quesito redes sociais, questionados se sentiam que suas vidas seguiam no modo automático, sem desafios ou objetivos, cerca de 50% dos entrevistados da classe C, D e E responderam "às vezes" ou "sempre. Entre os pesquisados da classe A, apenas 29% reagiram da mesma forma. Conforme o grupo de estudos, estes resultados parecem refletir um certo desalento que vem se formando nas classes com menos poder aquisitivo em decorrência da série de dificuldades enfrentadas no país.

Por fim, o espectro insegurança, cuja preocupação também encontrou eco mais forte entre os representantes das classes sociais menos abastadas. À pergunta "você se sente frequentemente inseguro na região onde vive?", aproximadamente 55% dos entrevistados das classes D e E responderam que "às vezes" e "sempre". Entre as pessoas da classe A, esse número caiu para cerca de 43%. "Fica evidente que a preocupação relativa à segurança física é maior entre as classes de menor poder aquisitivo", diz o grupo de estudos.


Pareamento da pesquisa durante a pandemia – Ansiedade aflorada

Mas no meio do caminho havia uma pandemia. Entre finalizar a segunda fase da pesquisa e lançar o estudo, o primeiro caso de uma pessoa infectada com o Covid-19 surgiu no Brasil. Após este, vários outros. Hoje são milhões que se contaminaram e mais de uma centena de milhares que morreram por conta da doença. Uma das principais formas encontradas para controlar a disseminação do vírus foi o isolamento e o confinamento social. O Brasil seguiu em parte essa conduta. Uma boa parcela da população do país abruptamente se viu obrigada a não sair de casa, temendo ser contaminada pelo novo coronavírus. 

Esta nova realidade de muitos brasileiros instigou o grupo de estudos responsável pelo Projeto Solidão a ir a campo novamente – a partir da segunda quinzena de março - entrevistar  as pessoas questionadas na fase da pesquisa quantitativa, para saber se a pandemia e o consequente isolamento haviam transformado drasticamente o modo como elas enxergavam a solidão. Grecco enfatiza que nessa etapa executou-se um pareamento - técnica que consiste em repetir os questionários para uma parcela dos entrevistados anteriormente - com a pesquisa anterior.

Ao todo, o grupo de estudo coletou 600 respostas e registrou pequenas diferenças entre o estado de espírito pré e pós-pandemia de alguns dos entrevistados. Na etapa anterior, haviam sido investigadas 17 variáveis que poderiam influenciar o fenômeno da solidão entre os brasileiros. Nela, 34,1% das pessoas afirmaram “às vezes” sentir essas variáveis, 33% “nunca” haviam experimentado, 21,1% “raramente” e 11,8% responderam “sempre” vivenciá-las. No levantamento realizado durante a pandemia, o número de entrevistados que respondeu “nunca” ter sentido as variáveis caiu para 28,5%, e aqueles que disseram “raramente” experimentar as variáveis que caracterizam a solidão aumentaram para 24%. O grupo constatou a migração de uma parcela à outra.

Essa fase do projeto ainda questionou os entrevistados sobre sentimentos relacionados ao estado de espírito durante o período de isolamento social. O objetivo foi saber qual o sentimento mais presente durante a pandemia. A ansiedade foi o item mais citado, por 54% da amostra, seguido por insegurança, medo e impotência, lembrados, respectivamente, por 47,3%, 36% e 27% dos entrevistados. “A solidão, que era o escopo principal desse projeto, aparece espontaneamente em 19,1% da amostra pesquisada”, afirma o grupo de estudos. Preocupação, tristeza e tédio também foram sentimentos que afloraram em decorrência do isolamento, segundo os respondentes.

Especificamente sobre a solidão um dado interessante. De acordo com o estudo, 42,3% dos entrevistados afirmaram sentir-se sozinhos mesmo antes da pandemia de Covid-19 e, desse montante, 21% enfatizaram que o sentimento se agravou em razão do isolamento. Dos demais respondentes, (57,7%) que disseram não ter o costume de sentirem-se solitários, 19,6% declararam que este sentimento surgiu com as medidas que restringiram o convívio social. “Tal resultado demonstra que, apesar das variáveis previstas no espectro das questões investigadas nas diferentes fases do projeto, o sentimento de solidão está presente em 40,6% da amostra”, afirma o grupo de estudos.


Brasil pós-pandemia

Muito antes da pandemia da Covid-19, a epidemia da solidão já era uma realidade. Em uma sociedade que louva a independência, o egoísmo e a competitividade e despreza a empatia e a solidariedade, a angústia, a tristeza e a infelicidade viram normas. 

De acordo com Grecco, ao mesmo tempo que o novo coronavírus intensificou nossos medos e angústias, despertou a preocupação pelos outros e um sentimento de comunidade há tempos adormecida. "A solidariedade passou a ser entendida como a tábua de salvação das nossas sociedades", diz.

Segundo o escritor, consultor e palestrante em desenvolvimento socioambiental, a presença da morte fez com que o brasileiro também descobrisse a empatia, que passou a ser exercitada em relação aos carteiros, entregadores dos aplicativos e todos aqueles que, em razão de suas atividades, propiciaram que grande parte da população permanecesse isolada. "Muitas pessoas que não tinham o hábito de praticar ações sociais começaram a confeccionar máscaras de proteção e distribuir alimentos, por exemplo. O que se arrecadou com doações nos primeiros dois meses de pandemia ficou muito acima do que se costuma angariar em um ano inteiro no país", afirma.

Grecco indaga, porém, se a onda solidária se tornará perene ou se se desmanchará assim que a curva de casos de Covid-19 achatar no Brasil. O escritor diz querer um "outro normal".  "Não era normal o que vivíamos enquanto sociedade antes da pandemia e agora temos uma chance de mudarmos. É a vida dizendo para que nossos valores sejam ressignificados. A curva dessa consciência e solidariedade é a única que não podemos deixar achatar", declara.

Grecco pondera que, por outro lado, a desconfiança pode se tornar a nova tônica social. "Quem conseguirá voltar à rotina antiga, desde tomar aviões até dar um simples aperto de mão? Por conta da postura das pessoas e dos governantes nessa pandemia, qual será o grau de confiança no outro e nas instituições?", indaga. Há uma grande chance de as pessoas terem seu instinto de sobrevivência aflorado, tornando-se ainda mais fechadas e distantes.

A outra opção, segundo o palestrante em desenvolvimento socioambiental, é entender que foi justamente esse modelo de vida, centrado na autossuficiência e no individualismo, o que provavelmente, nos levará à próxima pandemia. Talvez, mais letal.

 



Celso Grecco - Atuando há vinte anos como consultor e palestrante em desenvolvimento socioambiental, Celso Grecco é Fellow Ashoka, Sênior Fellow Synergos e coautor do livro "Financing the Future: Innovative Funding Mechanisms at Work" (Editora Terra Media, Berlim, 2007). Criador da primeira Bolsa de Valores Sociais (BVS) do mundo em 2003 para a então Bovespa (hoje B3) no Brasil, adotada como estudo de caso e recomendada para as demais Bolsas de Valores do mundo pela ONU. Em 2008, recebeu o prêmio Vision Awards em Berlim entregue pelo ganhador do Prêmio Nobel da Paz, o Professor Muhammad Yunus, e, em dezembro do mesmo ano, foi homenageado na ONU em Nova York. Citado no livro "Empreendedores sociais: o exemplo incomum das pessoas que estão transformando o mundo" (Editora Campus, 2009) teve também o perfil retratado nas revistas Newsweek (Estados Unidos) e Der Spiegel (Alemanha). Atuou como consultor de branding para o Charity Bank, primeiro banco sem fins lucrativos do mundo, com sede na Inglaterra. Em 2015, foi um dos finalistas, na China, do Prêmio Olga Alexeeva, outorgado pela Alliance Magazine da Inglaterra, que reconhece pessoas com contribuições relevantes ao setor social de países em desenvolvimento.

 

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