No Brasil, não existem, infelizmente, dados oficiais precisos sobre a
quantidade de acusados ou presos injustamente. Histórias reais de cidadãos de
bem que são encarcerados de forma errônea, pelas mais diversas causas, são
crescentes, principalmente na grande mídia.
Exemplo
disso, no último dia 28 de abril, o jornal Agora S.Paulo, em matéria subscrita
pelo jornalista Alfredo Henrique, trouxe ao conhecimento de todos os leitores
uma histórica trágica de flagrante injustiça cometida contra um pedreiro de 58
anos no interior de São Paulo. Esse senhor ficou preso por quase quatro anos e
meio, nas condições que sabemos dos cárceres brasileiros, condenado por suposta
prática de tráfico de drogas.
O
martírio desse senhor começou em 10 de junho de 2015, quando dois policiais
civis de Presidente Prudente, cidade do interior paulista (558 km de São
Paulo), receberam uma denúncia sobre tráfico de drogas e foram até a então
residência do suspeito, que na ocasião estava afastado da empresa onde
trabalhava, após passar por uma cirurgia na clavícula. Naquela oportunidade os
agentes policiais encontraram 16 gramas de maconha e no bolso do cidadão
investigadores encontraram R$ 520 e, também, anotações com nomes e números.
Diante desse cenário foi preso em flagrante por tráfico de drogas.
O senhor pontuou,
de plano, que o referido valor era relativo ao recebimento de benefício
previdenciário, pois estava afastado do trabalho por causa de uma cirurgia e
seria usado para pagar prestação do carro que era financiado. Já as anotações
com nomes e números, eram de serviços de serralheiro e pedreiro que estava
agendando para fazer.
Observando-se
as hipóteses narradas, depreende-se facilmente que existiam duas teses
antagônicas: uma narrativa dos policiais, que era convergente para a prática de
traficância; e a tese defensiva que sinalizava que o indivíduo era usuário de
drogas, que o valor era fruto de benefício previdenciário e que as anotações
eram serviços que iria realizar.
Aury
Lopes Junior assevera que o “processo penal é um instrumento de retrospecção,
de reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico. Como ritual,
está destinado a instruir o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por
meio da reconstrução histórica de um fato”.
Com
efeito, as provas são, inexoravelmente, os meios para a reconstrução
aproximativa dos fatos, proporcionando uma melhor análise para o julgador. No
entanto, inexplicavelmente, na hipótese trazida na reportagem, o Poder
Judiciário Paulista fez tábula rasa da tese defensiva, na medida em que
conferiu relevância exclusivamente aos depoimentos dos policiais civis que
efetivaram o flagrante.
Infelizmente,
a preponderância dos testemunhos de agentes de segurança pública – Policiais
Civis, Policiais Militares e Policiais Federais – é uma prática rotineira nos
juízos criminais brasileiros. Condenações pautadas nesses depoimentos já
levaram milhares de usuários de drogas ao cárcere como se fossem traficantes.
Como
resolver essa terrível questão? Para isso há que se perpassar pela formação do
convencimento do julgador sobre os fatos trazidos para sua decisão.
A
formação do convencimento de todos os juízes do país deve passar pela valoração
de todas as provas produzidas em juízo, sejam da acusação (Ministério Público),
sejam da defesa, não podendo desconsiderar qualquer elemento de prova trazidos
aos autos. Ademais, para que haja a condenação as provas devem romper
balizamentos (standards).
A
liberdade do magistrado não é plena, uma vez que não pode substituir a prova
por meras conjecturas ou pela sua opinião sobre os fatos ou sobre o acusado.
Assim,
não pode se balizar, por exemplo, em provas ilicitamente produzidas para formar
seu convencimento no sentido de condenar o acusado. Não pode o julgador, em
substituição à acusação, ter iniciativa probatório, sob pena de sair de seu
estado de imparcialidade, tão caro no sistema acusatório e no estado
democrático de direito. Além disso, a valoração dos elementos de prova deve ser
racional, afastando-se das inflexões ideológicas, das crenças, etc.
Compatibilizar
a presunção de inocência e a valoração racional é o grande desafio do sistema
processual penal constitucional brasileiro. Para cada fato narrado na denúncia,
o órgão de acusação, para que veja sua tese satisfeita, há que trazer provas concretas
que consigam confirmar a hipótese levantada. Essas provas devem ser suficientes
para gerar no julgador o convencimento sobre a verdade dos fatos narrados. As
provas têm que tirar o juiz do estado de incerteza sobre os fatos e aproximá-lo
da verdade. Para isso ele tem que se socorrer de mecanismo de valoração
racional. E como fazer isso? No processo penal a verdade não é aquilo que o
juiz diz ser, mas sim decorre elementos de prova produzidos durante a
instrução.
Com
efeito, o desenvolvimento do processo judicial, mediante o requerimento e a
produção de provas deve permitir formar um conjunto de elementos de juízo que
apoiem ou refutem as diferentes hipóteses sobre os fatos do caso. O julgador
somente poderá emitir um juízo valorativo sobre as provas produzidas no
processo, não podendo levar em consideração elementos externos aos autos.
Portanto,
para alcançar um juízo de certeza que possa ensejar a condenação, ou seja, que
aproxime os fatos da verdade, a hipótese acusatória terá que ser confirmada pelas
provas produzidas e valoradas e ultrapasse o standard “para além de qualquer
dúvida razoável”, isto é, a prova não basta gerar indícios de que a tese de
acusação é provável, ela tem que retirar completamente o julgador do juízo de
incerteza.
Todavia,
infelizmente, a esmagadora maioria dos julgamentos são despidos dessa
conformação, não há standards a serem suplantados para alcançar um grau de
confirmação. São julgamentos muitas vezes pautados em provas frágeis, o que
está em confronto com o primado da presunção de inocência.
Na
situação da reportagem do jornal “Agora”, o juízo da Comarca de Presidente
Prudente desconsiderou as provas trazidas pela defesa que desconstituíam a
hipótese acusatória (traficância). Posteriormente, em sede de revisão criminal,
a situação do senhor foi corrigida, porém quem irá ser responsabilizado pelos
anos no cárcere? Quem irá responder pela destruição da imagem e da vida desse
cidadão?
Ademais,
o sistema processual penal constitucional estabelece que todos os indivíduos são
considerados inocentes até que sobrevenha sentença penal condenatória
transitada em julgado. Antes do trânsito em julgado os acusados devem ser
tratados como inocentes, as regras de produção e valoração das provas devem ser
no sentindo de preservar a presunção de inocência e o julgamento deve se pautar
em um rigoroso standard de prova, em que as provas valoradas sejam suficientes
para confirmar as hipóteses acusatórias.
Mas não é
só: há que ser possibilitado, efetivamente, que a defesa apresente contra-hipótese
e contraprovas, e esses elementos produzidos pela defesa também sejam valorados
pelo julgador. Não se pode permitir, para formação do convencimento do
julgador, que sejam valoradas apenas as histórias narradas pela acusação. Acaso
tivesse sido respeitada a dinâmica processual, com a valoração da prova
defensiva, que, destaque-se, o pedreiro de Presidente Prudente evidenciou desde
o momento do flagrante, não teria ocorrido a abissal injustiça.
Marcelo
Aith - advogado especialista em Direito Público e Penal e professor convidado
da Escola Paulista de Direito (EPD)