Mais de 100 diferentes linhagens do
novo coronavírus (SARS-CoV-2) chegaram ao Brasil entre os meses de fevereiro e
março de 2020, mas apenas três delas – muito provavelmente vindas da Europa –
continuaram a se expandir no país e originaram os mais de 805 mil casos de
COVID-19 confirmados até 12 de junho.
Essas três linhagens emergiram nos
estados de São Paulo e do Rio de Janeiro entre 22 e 27 de fevereiro e sua
transmissão comunitária já estava estabelecida no início de março, bem antes de
os órgãos de saúde recomendarem a restrição de viagens aéreas e a adoção de
“intervenções não farmacológicas” (NPIs, na sigla em inglês) para conter a
disseminação do vírus. O Ministério da Saúde regulamentou em 13 de março os
critérios de isolamento social e quarentena, que foram implementados por
governadores e prefeitos cerca de uma semana depois. As fronteiras terrestres
só foram fechadas em 19 de março e a entrada de estrangeiros por voos
internacionais só foi restringida no dia 27 do mesmo mês.
As conclusões são de um estudo apoiado pela
FAPESP e divulgado na plataforma medRxiv, ainda sem
revisão por pares.
“Nossos resultados evidenciam a
existência de duas fases da epidemia no país. A primeira é de transmissão a
curta distância, dentro das fronteiras estaduais de São Paulo e Rio. No início
de março teve início a fase dois, de longa distância. Ou seja, as pessoas
contaminadas nesses dois estados já estavam levando o vírus para as demais
regiões do país quando foram adotadas as NPIs”, conta a pesquisadora Ester Sabino,
do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP), uma
das coordenadoras da pesquisa.
Para chegar a essas conclusões, os
cientistas usaram um modelo de transmissão orientada pela mobilidade da
população. Informações sobre viagens aéreas e sobre as mortes confirmadas por
COVID-19 entre fevereiro e abril foram cruzadas com dados genômicos do
SARS-CoV-2 obtidos pelo sequenciamento de quase 500 isolados virais de
pacientes diagnosticados em 21 dos 27 estados brasileiros (contando o Distrito
Federal). O trabalho foi conduzido no âmbito do Centro Brasil-Reino Unido
para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE).
Apesar da queda acentuada nas viagens
aéreas nacionais após meados de março, os pesquisadores detectaram um aumento
de 25% na distância média percorrida por passageiros aéreos no período. Tal fato,
segundo os autores, coincidiu com a disseminação do SARS-CoV-2 dos grandes
centros urbanos para o resto do país.
“Nossos resultados lançam luz sobre o
papel de grandes centros populacionais altamente conectados na ignição rápida e
no estabelecimento do SARS-CoV-2 e fornecem evidências de que as atuais
intervenções permanecem insuficientes para manter a transmissão do vírus sob
controle no Brasil”, afirmam no texto.
O impacto da quarentena
Antes das medidas de isolamento
social serem adotadas, a taxa de contágio do SARS-CoV-2 no Brasil estava em
torno de 3. Isso significa que cada infectado transmitia o vírus, em média,
para três outras pessoas, o que favorecia o crescimento exponencial da doença.
Embora tenham sido implementadas
quando a transmissão comunitária já estava estabelecida e o vírus já havia
cruzado as fronteiras paulistas e fluminenses, as restrições da quarentena
conseguiram – em um primeiro momento – conter significativamente a disseminação
da doença.
O modelo de transmissão orientada
pela mobilidade mostra que a taxa de contágio chegou a ficar abaixo de 1 nas
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro logo após a adoção das NPIs, o que evitou
o crescimento exponencial do número de casos e o colapso dos hospitais.
Mas, à medida que a adesão da
população ao isolamento diminuiu, a taxa de contágio foi lentamente aumentando
para valores entre 1 e 1.3 e não mais baixaram. Especialistas em epidemiologia
afirmam que somente quando a taxa de contágio se estabiliza abaixo de 1 durante
algumas semanas o crescimento no número de casos e de mortes começa a
desacelerar.
Por meio de análises de filogeografia
– que combinam os dados de sequenciamento do genoma viral com as informações do
local em que ocorreu a transmissão – os pesquisadores identificaram que 104
linhagens do SARS-CoV-2 entraram no Brasil, a maioria oriunda dos Estados
Unidos.
Do total de genomas sequenciados no
Brasil, 75% pertencem a três linhagens ou clados de origem europeia: 186 genomas
(38%) correspondem ao “clado1"; 161 (33%) são do “clado 2”; e 19 (4%) se
inserem no “clado 3”.
“É possível que as outras linhagens
que identificamos não tenham conseguido se expandir porque quando elas entraram
no Brasil já haviam sido implementadas as medidas de isolamento social.
Mas é bem provável que, à medida que mais isolados virais forem sequenciados no
país, clados diferentes sejam identificados. No Reino Unido, onde já foi feito
o sequenciamento de mais de 20 mil amostras de pacientes com COVID-19, já foram
identificadas mais de mil entradas do novo coronavírus”, conta
Sabino.
Como explica a pesquisadora, o genoma
do SARS-CoV-2 tem cerca 30 mil pares de bases (que formam as cadeias do
RNA viral). Caso o vírus que infecta um indivíduo sofra uma mutação na posição
200 da cadeia de RNA, por exemplo, todas as pessoas que se contaminarem a
partir desse paciente vão carregar a mesma marca no genoma viral. “Ao
cruzar esses dados com informações sobre a data e o local em que as amostras
foram coletadas conseguimos traçar a trajetória da epidemia, que ainda
está apenas no começo”, afirma Sabino.
Segundo a pesquisadora, ainda será
preciso sequenciar mais amostras da região Norte do país para determinar, por
exemplo, a origem da linhagem que se disseminou fortemente por estados como
Amazonas e Pará. “O que já sabemos é que os deslocamentos fluviais entre as
cidades amazônicas contribuíram muito para espalhar o vírus”, diz.
Na avaliação de Sabino, esse tipo de
estudo ajuda a entender como uma epidemia evolui e quais são as principais
rotas de transmissão. “Esse conhecimento talvez sirva de lição para que em uma
situação futura as medidas sejam tomadas mais precocemente e de forma mais
efetiva.”
O artigo Evolution and epidemic spread of SARS-CoV-2 in Brazil pode
ser lido em https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.06.11.20128249v1.
Karina Toledo
Agência FAPESP
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