A facilidade com que nos deslocamos hoje é, sem dúvida, uma das grandes conquistas da nossa era. Seja por lazer, trabalho, estudo ou para reencontrar familiares, viajar faz parte da vida moderna. Os dados da Organização Mundial do Turismo (OMT) confirmam isso: no primeiro trimestre de 2025, as chegadas internacionais cresceram 5% e superaram, inclusive, os níveis pré-pandemia de 2019¹. Esse fluxo crescente, embora celebre a vitalidade do turismo, traz consigo uma realidade inegável: cada deslocamento implica riscos sanitários que, se ignorados, podem comprometer uma experiência enriquecedora. Afinal, as estimativas são claras: entre 43% e 79% dos viajantes internacionais podem adoecer em suas jornadas, e algumas dessas condições, infelizmente, são potencialmente fatais².
É, portanto, com uma ponta de preocupação que
constato a persistência de um grande equívoco: a ideia de que a Medicina de
Viagem "serve apenas para destinos exóticos". Essa visão, limitada e
perigosa, subestima as ameaças à saúde que se escondem em nosso próprio
quintal. A Amazônia, o Pantanal, as trilhas da Serra do Mar ou o sertão
nordestino, por mais belos que sejam, expõem o indivíduo a vetores, alimentos e
água potencialmente contaminados, fauna silvestre e desafios climáticos. O
aconselhamento pré-viagem, uma prática consolidada globalmente há décadas, ainda
é lamentavelmente subutilizado no Brasil. Uma pesquisa realizada com 3.237
brasileiros revelou que apenas 28% deles já haviam sequer ouvido falar na
especialidade; contudo, uma vez que compreendiam seu propósito, mais de 90%
reconheciam sua importância³. Isso me leva a uma conclusão clara: o problema
não é a falta de adesão, mas sim a carência de informação.
O que, de fato, mais adoece quem viaja? Os dados da
rede de vigilância GeoSentinel, que analisou mais de 42 mil viajantes doentes,
nos mostram um padrão recorrente e inquestionável: síndromes gastrointestinais,
febris e dermatológicas são as principais causas da maioria dos atendimentos.
Como profissional de saúde, é preocupante que menos da metade desses indivíduos
tenha realizado uma consulta pré-viagem³. Entre as condições febris, a malária
predomina entre os que retornam da África Subsaariana, enquanto a dengue surge
com frequência após viagens à Ásia e América Latina. Nos quadros dermatológicos,
as mordidas e arranhões que demandam profilaxia antirrábica se sobressaem, e a
vulnerabilidade é ainda maior entre o grupo que visita familiares em países de
origem (VFR), que demonstra menor procura por aconselhamento e maior incidência
de malária e febre entérica³.
A diarreia do viajante, por sua previsibilidade e
alta incidência, merece atenção especial. Revisões de referência descrevem
taxas elevadas em regiões de risco, com uma clara predominância bacteriana e um
início típico na primeira semana do deslocamento. Sua prevenção envolve,
invariavelmente, rigor na higiene alimentar e da água. A gestão, por sua vez,
abrange desde a hidratação adequada e o uso de antidiarreicos em casos não
invasivos, até a administração de antibióticos de resgate quando clinicamente
indicados, sempre com especial atenção aos perfis de resistência locais e às
potenciais interações medicamentosas². A avaliação pré-viagem é o momento para
organizar esse plano de ação, que inclui também a orientação sobre vacinas, a
quimioprofilaxia para malária (quando necessária) e estratégias eficazes de
proteção contra vetores².
Há, ademais, riscos que costumam passar
despercebidos em nossos roteiros domésticos; a exposição a animais é um exemplo
premente. Mesmo entre grupos que, a priori, deveriam estar bem informados, como
estudantes de veterinária, estudos apontam lacunas significativas no
conhecimento e na adoção da profilaxia pré-exposição para raiva⁴. Por isso, é
importante não alimentar nem tocar animais desconhecidos, bem como se atualizar
quanto as condutas pós-exposição e, em cenários específicos de risco elevado,
discutir com o especialista essa medida – um item que deveria ser parte
integrante do repertório de qualquer viajante².
Em minha experiência, planejamento não é sinônimo
de burocracia, mas sim de prudência. O Ministério da Saúde, com sabedoria,
recomenda buscar orientação médica entre quatro e oito semanas antes do
embarque, garantindo tempo hábil para vacinas, profilaxias e a obtenção de
documentos essenciais como o Certificado Internacional de Vacinação ou
Profilaxia (CIVP), quando exigido⁵. Ferramentas técnicas atualizadas, como o
CDC Travelers’ Health e o Yellow Book, são valiosos guias que norteiam as
decisões baseadas em risco, mas dependem de serem efetivamente incorporados à
prática brasileira de aconselhamento ao viajante².
A pandemia de COVID-19 nos deixou uma lição
inesquecível e brutal: patógenos se propagam rapidamente com as pessoas. A
Medicina de Viagem, portanto, não é um luxo, nem um nicho para poucos; é uma
parte intrínseca de uma abordagem responsável e abrangente da saúde, tanto
individual quanto coletiva. Se o ato de viajar significa ampliar nossos
horizontes, fazê-lo com informação e preparo é um dever que temos para conosco
e para com a comunidade global.
Dr. André Bom - Infectologista - Laboratório Exame (Dasa)
Referências
- ONU
BR. Turismo tem aumento de 5% no primeiro trimestre do ano, diz agência da
ONU BR. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2025/05/1848856
- Murray,
H. W. The Pretravel Consultation: Recent Updates. The
American Journal of Medicine, v. 133, n. 8, p. 916–923, ago.
2020 (pretravel_consult_-_updates[1].pdf). Disponível em: org
- Castillo
Santana, E. et al. Conhecimento e atitudes sobre a medicina de viagem no
Brasil. Braz J Infect Dis, v. 26, n. S1, p. 102281, jan. 2022
(PI 285). Disponível em: org
- Conhecimento
e Atitudes sobre a Prevenção de Raiva em Estudantes de Veterinária Braz J
Infect Dis, v. 26, n. S1, p. 101996, jan. 2022
(s2.0-S1413867021007509-main.pdf). Disponível em: doi.org
- Ministério
da Saúde. Saúde do Viajante. Disponível em: www.gov.br

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