Eu tinha dez anos e duas paixões. Uma se chamava Graça: loirinha, linda, dona do mundo, obrigava-me a manter limpa a bicicleta. Com ela, as coisas eram tratadas de igual para igual: comigo, com a professora, com quem quer que fosse. O nome da outra era Regina. Aluna mais sabida da sala, era, entretanto, tímida, jamais polemizava com alguém. Um dia Guida, colega com um pouco mais de idade, xingou Regina. Interferi. Guida injuriou-me de cavalo. No ato, insultei Guida de vaca.
Juro que só troquei uma
invectiva por outra. Equivalência: animal por animal. Mas houve um alarido. Sem
entender porque um quadrúpede era havido por menos honroso do que outro, ouvi
sermão e ameaças de castigo por parte de uma professora furibunda. Só resisti
valente ao alvoroço porque contava com o sorriso que Regina me dirigira. Ele me
acompanhou por toda a batalha incompreendida que me travaram. Mas não me foi
nada fácil sustentar aquela luta sem causa inteligível.
Apenas muito mais tarde
compreendi, contudo pela metade, a confusão, e só porque ouvi uma senhora, com
más caras, referindo-se a sua vizinha. Dizia, com ira na voz e faísca nos
olhos: “aquela vaca”. Claro, concluí, vaca é palavrão. Mas o entendimento
completo, com vaca querendo significar puta, isso só veio algum tempo depois.
Daí – eureca! – o alvoroço da professora. Mas jamais entendi como ela não
entendeu que eu não estava entendendo nada. E quase me permiti: “aquela vaca”.
Assim fui iniciado na
percepção às diferenças. Notei que bastava estar associada ao masculino ou ao
feminino para o significado de inúmeras palavras despegar-se completamente do
seu sentido léxico oficial, tornando-se dignificador ou pejorativo. Acho
curiosas as disciplinas que estudam as relações sociais de poder não nomearem
essas distintas acepções. Gostaria de saber como analistas do discurso
denominariam, se o fazem, esse fenômeno, que se me ressalta ser de gênero.
Há muitos exemplos dessa
hedionda discriminação que refiro. O Houaiss me ajuda na demonstração. Tomemos
o vocábulo mulher: “na tradição, como indivíduo e/ou coletivamente,
representação de um ser sensível, delicado, afetivo, intuitivo; fraco
fisicamente, indefeso (o 'sexo frágil'), idealmente belo (o 'belo sexo'),
devotado ao lar e à família (mulher do lar) etc”. Já, homem é aquele ser “em
que sobressaem qualidades como coragem, força, determinação, vigor sexual”. E o
Houaiss é moderno.
O Aurélio não difere na
carga minorante dos significados. O verbete mulher: “dotada das chamadas
qualidade e sentimentos femininos (carinho, compreensão, dedicação ao lar e à
família, intuição)”. Formando palavra composta: “mulher-dama; mulher-da-rótula;
mulher-da-rua; mulher-da-vida; mulher-da-zona; mulher-de-amor;
mulher-de-má-nota; mulher-de-ponta-de-rua; mulher-do-fandango; mulher-do-mundo;
mulher-do-pala-aberto; mulher-errada”. Todas são categorizadas como meretriz.
Ainda o Aurélio, homem:
“dotado das chamadas qualidades viris, como coragem, força, vigor sexual etc”.
Em palavras compostas: homem da lei; homem da rua; homem de ação; homem de bem;
homem de Deus; homem de empresa; homem de espírito; homem de Estado; homem de
letras; homem de negócios; homem de palavra; homem de prol; homem de pulso;
homem de sociedade; homem do mundo; homem do povo; homem público. Todas são
palavras que enaltecem, proporcionam dignidade.
Um texto que roda na
internet, denominado A Sociedade Feminina Brasileira queixa-se do tratamento
machista, porém, mais ainda do que o dicionário, arremata a comprovação da
minha suspeita. Não identifiquei o autor, talvez a manifestação seja da SFB,
mas o escrito arrola exemplos bem-acabados do machismo que, na produção de
sentido histórico e ideológico das palavras, habita o vocabulário vinculado a
gênero nesse nosso caro Brasil. Transcrevo-o sem comentário. Ele fala por si:
Cão
= melhor amigo do homem; Cadela = puta \\ Vagabundo = desocupado; Vagabunda =
puta \\ Touro = homem forte; Vaca = puta \\ Pistoleiro = assassino; Pistoleira
= puta \\ Aventureiro = destemido, desbravador; Aventureira = puta \\ Garoto de
rua = menino que vive na rua; Garota de rua = puta \\ Homem da vida = pessoa
com sabedoria; Mulher da vida = puta \\ O galinha = o "bonzão", que
traça todas; A galinha = puta \\ Peixe = bom nadador; Piranha = puta \\ Puto =
irritado, bravo; Puta = puta.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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