Já não se sustenta a ideia de que há um contrato social
no sentido de o povo articular-se e fazer um “combinado”, organizando-se,
formando uma nação pacífica. A vida é como sempre foi: luta por poder. O assunto,
então, não é o desejo quimérico de construir um país de pessoas generosas. Isso
não ocorreu nem em tempo algum nem em lugar nenhum.
Nem mesmo na Utopia de Thomas More, que caiu no
imaginário popular como um “lugar de sonhos”, a coisa é diferente. Na ilha
utópica, o poder fica com os religiosos e os não crentes são escravizados ou
mortos. A vida é, pois, essa eterna disputa; qualquer fantasia deve ser
abandonada. Se é contenda, então, que haja regras, ou será cada um por si.
A conversa em sério deve voltar-se à justa igualdade de
condições dos disputantes pelos espaços em sociedade: as regras do jogo. Está
bem: somos autônomos; na nossa autonomia atuamos de modos diferentes; o produto
do meu esforço há de ser auferido por mim. Mas a autonomia, a diferença e o
esforço não podem privilegiar ninguém, não é?
Bem, o Brasil não tem muito que contar sobre justiça
social. Nossas regras do jogo, no correr da nossa História, não nos puseram em
campo com igualdade de condições. Um lançar de olhos ao derredor verá que
alguns são os donos da bola, dos uniformes, do campo. Se atentarmos melhor,
compreenderemos que alguns são donos da torcida e até do juiz.
Não jogamos um jogo honesto. Nossos registros são de
exclusão: ademais de nossas mazelas de Colônia, de Reinado e de República
Velha, mais recentemente a engenharia social desenvolvimentista da segunda
metade do século passado (particularmente a Ditadura de 64) amontoou gente de
toda e qualquer forma nas periferias das grandes cidades.
Resta que hoje se lhes falta a parte que, sem ela, não há
condições equilibradas de jogar: emprego, escolas, esgoto, saúde, previdência,
quaisquer recursos públicos satisfatórios. Ora, por bem ou por mal, todos
querem o seu prometido “lugar ao sol”. Essa gente trazida dos interiores
longínquos e deixada à própria sorte também, por suposto, quer o seu.
Os conflitos cada vez mais graves que vivemos podem
parecer estranhos para quem esteja confortável e alienado, mas é um exercício
regular de direito dos sobrados em desvantagem nas posições sociais. Seja
dizer: buscar direitos não é coisa de “comunista”; pleitear que a luta pela
vida seja em condições de igualdade é pressuposto do pensamento liberal.
Locke (Os Pensadores, Abril Cultural), alicerce do
liberalismo: no estado de natureza, “sendo todos providos de faculdades iguais,
não há possibilidade de supor-se qualquer subordinação entre os homens que nos
autorize a destruir a outrem, como se fôssemos feitos para o uso uns dos outros
como as ordens inferiores de criaturas são para nós” (p. 36).
Para sair do estado de natureza e viver sob um pacto
social, o homem não pode aceitar privilégios de subgrupos, “porque não é
qualquer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os homens, mas apenas
o de concordar mutuamente e em conjunto, em formar uma comunidade, fundando um
corpo político” (p. 39) uniforme, ou seja, de iguais.
A coerência de seu texto avaliza essa pretensão que
subordina a vontade egoísta à possibilidade de civilização: ao optar pela vida
em comum, o homem abandona o poder de fazer tudo quanto julgue conveniente,
“para que seja regulado por leis feitas pela sociedade, até o ponto em que o
exija a preservação dele próprio e do resto da sociedade” (p.83).
“Como a primeira lei natural fundamental que deve reger
até mesmo o poder legislativo consiste na preservação da sociedade e, até o
ponto em que seja compatível com o bem público, de qualquer pessoa que faça
parte dela” (p. 86). Em suma, as “leis não devem ser destinadas a qualquer
outro fim senão ao bem do povo” (p. 90). Evidente: o bem geral.
Na luta constante por vantagens nos espaços sociais, se
as condições são de igualdade, os ânimos concorrentes se arrefecem, seja por
satisfação pessoal no sistema, seja pela medida análoga do concorrente. No
nosso caso brasileiro, o prevalecimento de certos grupos sobre a maior parte do
povo torna injusta a disputa pelos confortos da existência.
Somos como um jogo de cartas marcadas. De fato, ainda que
não exista um contrato social, os contratualistas, com razão, são unânimes em
afirmar que uma população traída não só pode, mas deve se rebelar. Parece que
estamos sempre em ensaios de uma rebelião postergada. Não sei, não: um dia,
talvez, isso aconteça; quem sabe a gente até melhore.
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