Um dos aspectos mais interessantes da obra de Simone de Beauvoir é a tentativa de desconstrução da teoria do “eterno feminino”. A partir de uma análise da primeira parte da obra “O Segundo Sexo”, denominada “Fatos e mitos”, podemos verificar todo o trabalho de Beauvoir na tentativa de efetuar uma desconstrução da ideia vigente de “ideal feminino” elaborada pelas históricas tradicionais formas de poder.
Nestes escritos encontramos citações como a de Pitágoras, que indica que o problema é antigo, ancestral: Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher. PITÁGORAS
Por outro lado Simone cita também as tentativas de encarar o problema de outra perspectiva como a de Pouli de La Barre: Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte. POULAIN DE LA BARRE
Abordando o tema de maneira mais direta Beauvoir se pergunta o que seria a ideia de uma essência feminina, em várias épocas e culturas? A partir desta pergunta, ela se propõe examinar o que seria o ideal de “O eterno Feminino” existente em nossa cultura ocidental? E, é a partir desta questão que podemos estabelecer uma relação direta com os problemas teóricos característicos do existencialismo principalmente em seu desenvolvimento por Jean Paul Sartre. Se existe uma essência feminina esta essência seria secretada pelos ovários? Ou teria apenas uma característica cultural? Isto é, o feminino está no biológico, essencialmente definido ou seria uma construção social, como modernamente costuma ser expresso. Ainda existem algumas questões que Simone se propõe que são, de certo modo provocativas para a reflexão, e possuem por esta natureza uma função propedêutica. A essência feminina estará congelada no fundo de um céu platônico? Se está, o modelo nunca foi registrado. O terreno do conceitualismo perdeu terreno para o terreno da prática social e cultural. O problema do essencialismo passa a ser um dos focos da desconstrução. As ciências biológicas e sociais não “acreditam” mais na existência de entidades imutáveis, fixas, que definiriam determinados caracteres como os da mulher, do judeu ou do negro. O conceito de caráter também estaria em jogo. Essência e caráter são conceitos que dependiam um do outro em concepções “conservadoras”, arcaicas. O caráter dependeria da de um tipo de essência. Esta relação, de traços evidentemente dogmáticos, eram um terreno fértil de juízos discriminatórios, preconceituosos e opressores. Os existencialistas causaram uma verdadeira reviravolta nestas concepções essencialistas. A princípio, eles consideram o caráter como uma reação secundária a uma situação e não como algo pré-concebido, programado na essência do indivíduo, determinista. Simone enfrenta todas estas concepções em concepção anti-determinista.
Para Simone, se hoje não há mais uma feminilidade definida, é porque nunca houve. Mas ela vai além do horizonte dos problemas femininos. Recusar as noções de eterno feminino de alma negra e de caráter judeu, não é negar que haja hoje judeus, negros e mulheres; a negação não representa para os interessados uma libertação e sim uma fuga inautêntica. A argumentação encontra no existencialismo seu fundamento. A liberdade advém, primeiro, de uma negação de concepções arcaicas e escravizantes. Mas como é historicamente definida a mulher como essência? Comecemos pelo gênesis. O que simboliza a história do Gênese em que Eva aparece como extraída, segundo Bossuet, de um "osso supranumerário" de Adão. O significado mais evidente é o de que a humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele, Neste sentido ela não é considerada um ser autônomo. Esta característica é de fundamental importância para a constituição do que denominaremos aqui de “filosofia do feminismo”. Negar à mulher a característica da autonomia significa, obviamente, negar todos os direitos que caracterizam como pessoa, cidadã, indivíduo, isto é, todas as atribuições que distinguem uma pessoa de uma coisa. Se a história da mulher passa pelo fato de ser tratada como um tipo de “coisa” e não de pessoa, durante várias épocas e em diversas culturas, o corpo tem papel fundamental nesta relação entre a coisa e quem se apossa desta coisa. Bossuet resume bem esta condição, no sentido de como o corpo da mulher foi usado: "O corpo do homem tem um sentido em si, abstração feita do da mulher, ao passo que este parece destituído de significação se não se evoca o macho... O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem". A mulher determina-se e diferencia-se “em relação ao homem” e não este em relação a ela; esta determinação impõe que a fêmea é o “inessencial” perante o “essencial”. Se a mulher não possui, culturalmente uma essência, ela se define a partir de outra essência, no caso a masculina. Neste raciocínio, o homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. Neste contexto amplo as culturas se “esquecem” que a mulher é igualmente uma consciência para si.
Os outros são, via de regra, aqueles que não iguais a nós, isto é não são humanos, não são melhores, são piores, não são gente. São bárbaros, nós não somos, são maus, somos bons, são feios, somos belos. Os judeus são "outros" para o antissemita, os negros para os racistas, os indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários. Todos possuem um outro de oposição.
A definição
do outro, feita por mim, é sempre a minha definição nunca o que o outro
realmente é. O outro é, também, fonte de temor, estranhamento, ódio,
incompreensão, distanciamento, violência e desejo. Do ponto de vista da análise
dos tipos de discursos, exemplo clássico de definição da mulher pelo discurso
masculino é o discurso religioso. As religiões, segundo Simone, refletem essa
vontade de domínio e estes discursos fundamentam vários costumes opressores. Os
costumes se perpetuam a partir de arquétipos como nos exemplos de Eva e de
Pandora. No século XIX, a querela do feminismo torna-se novamente uma querela
de sectários; uma das consequências da revolução industrial é a participação da
mulher no trabalho produtor: nesse momento as reivindicações feministas saem do
terreno teórico, encontra fundamentos econômicos; seus adversários fazem-se
mais agressivos. A história do trabalho da mulher e do trabalho do homem é
repleta de diferenças de valor. A fim de tentar provar a inferioridade da
mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a
teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia
experimental.
A naturalização é um dos modos do discurso ideológico. Supostamente o que é natural é, por si só, justo e bastaria atribuir uma “natureza específica” a algo que ela estaria justificada. A ideia de natureza dá um ar de cientificidade para o argumento e para a definição. Então, se o eterno feminino é frágil, “por natureza”, estaríamos naturalizando o que ainda não foi provado. Se o eterno feminino é frívolo atribui-se uma característica psicológica a priori ao indivíduo que só pode ser provada realmente com a ação, no mundo empírico. A naturalização do discurso era uma forma de dominação em um mundo em que a ciência ainda era masculina. O "eterno feminino" conclui Simone é o homólogo da "alma negra" e do "caráter judeu".
Eli Vagner Rodrigues - professor de Filosofia e Ética do Departamento
de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação (Faac) da
Unesp de Bauru
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