Pesquisadores
brasileiros mostram ser possível mensurar o grau de sofrimento causado pela
pandemia e pelo isolamento social com base na interpretação de relatos oníricos
feita com auxílio de ferramentas para análise de discurso (Grande Onda de Kanagawa, xilogravura de Katsushika Hokusai;
imagem: Wikimedia Commons)
E, de
repente, foi preciso evitar beijos, abraços e até um fraterno aperto de mão.
Usar máscara para sair de casa, tirar os sapatos quando voltar, higienizar tudo
com álcool em gel. Dedicar mais tempo aos filhos, ficar longe dos amigos e dos
colegas de trabalho. O quarto virou escritório; a sala, academia; e o velho
tapete azul trazendo lembranças do mar.
Neste
cenário de isolamento imposto pela COVID-19, o cérebro recorre aos sonhos para
metabolizar as emoções intensas vivenciadas durante o dia e assimilar eventuais
experiências que possam favorecer a sobrevivência, em uma estratégia de
adaptação ao “novo normal”.
“Segundo
alguns teóricos, a realidade onírica é como uma super-realidade virtual que nos
permite, em um contexto de medo profundo, treinar e melhorar a performance em
aspectos cruciais do cotidiano”, explica à Agência FAPESP a
neurocientista Natalia Mota, pós-doutoranda no Instituto do Cérebro da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Partindo
dessa premissa, a pesquisadora analisou relatos de sonhos de um grupo de
voluntários com o objetivo de investigar como estavam sendo afetados pela
pandemia e pelo isolamento social. Os resultados do estudo – divulgados na
plataforma medRxiv, ainda em versão preprint (sem revisão por pares) – sugerem que,
quanto maior era o grau de sofrimento do indivíduo no primeiro mês da
quarentena, mais comuns eram as menções a termos associados à ideia de
“limpeza” nos relatos oníricos.
O trabalho
integra o projeto de pós-doutorado de Mota, supervisionado pelos pesquisadores
Sidarta Ribeiro (UFRN) e Mauro Copelli (Universidade Federal de Pernambuco).
Ambos são coautores do artigo e integram o Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em
Neuromatemática (NeuroMat), um CEPID apoiado pela
FAPESP na Universidade de São Paulo (USP).
Ferramentas
para uso clínico
Com apoio
da rede NeuroMat, Mota desenvolveu nos últimos anos uma série de aplicativos e
softwares que permitem, por meio da análise do discurso, diagnosticar doenças
psiquiátricas, particularmente a esquizofrenia, com bastante acurácia.
Essas ferramentas
foram posteriormente adaptadas para fazer avaliações cognitivas, principalmente
de crianças na fase de alfabetização, como explica Ribeiro. “Vimos que um
indivíduo saudável começa a organizar seu discurso entre os cinco e os oito
anos de idade e essa habilidade vai se aprimorando até a idade adulta. Mas em
pessoas com doenças como esquizofrenia essa capacidade em vez de avançar começa
a decair quando chega a adolescência”, diz o pesquisador.
Estudos
anteriores do grupo comprovaram que os relatos de sonhos se configuram no
material mais rico para esse tipo de análise, pois garantem acesso direto ao
que vai no inconsciente dos indivíduos.
“Se eu te
contar como foi meu dia ontem, por exemplo, será um relato cronológico e
baseado em fatos reais. Não será muito diferente do relato de um paciente
bipolar ou esquizofrênico. Mas quando comparamos narrativas oníricas vemos que
são completamente distintas”, afirma Ribeiro.
Na
avaliação do pesquisador, isso acontece porque o relato onírico não é
construído a partir da interação com outras pessoas e, portanto, a patologia
não fica diluída na normalidade dos demais envolvidos na história. “A narrativa
é mais livre e 100% construída na mente do paciente”, diz.
Um dos
aplicativos desenvolvidos pelo grupo para uso clínico possibilita a coleta de
dados, na forma de áudio, por meio do smartphone do próprio indivíduo a ser
avaliado. Para testar a viabilidade da ferramenta, entre os meses de setembro e
novembro de 2019, os pesquisadores solicitaram a um grupo de voluntários
saudáveis que enviassem o relato diário de seus sonhos em mensagens com no
mínimo 30 segundos de duração.
“Quando
pretendíamos iniciar os testes em um grupo de pacientes com esquizofrenia veio
a COVID-19 e, com ela, toda uma discussão sobre como a crise de saúde estava
alterando a qualidade do sono e o padrão dos sonhos. Decidimos então comparar
nossa amostra coletada no período pré-pandemia com outra realizada no primeiro
mês da quarentena, também com voluntários saudáveis, para ver as diferenças na
estrutura e no conteúdo do discurso”, conta Mota.
Relatos
fornecidos por 67 voluntários foram avaliados por meio de três ferramentas
desenvolvidas pelo grupo. A primeira, focada na estrutura do discurso, compara
o quão complexa e conectada é a trajetória de palavras usadas na narrativa.
“O
discurso de uma pessoa adulta, escolarizada e sem patologia mental costuma ser
bastante conectado. O relato tem começo, meio e fim. Já o de um paciente com
esquizofrenia, de modo geral, é mais pobre, bastante fragmentado e desorganizado.
Mas como o estudo foi feito com voluntários saudáveis não vimos diferença em
termos de estrutura nos relatos pré e durante pandemia, como esperado”, diz
Mota.
A segunda
e a terceira ferramentas têm como foco o conteúdo do discurso. Uma delas mede –
a partir da comparação com dicionários padronizados – a proporção de palavras
inseridas em determinadas classes, como, por exemplo, conteúdo sentimental. Foi
analisada no estudo a quantidade de palavras associadas a emoções positivas e
negativas. “De modo geral, os relatos de sonhos durante a pandemia tinham maior
proporção de palavras relacionadas à raiva e à tristeza do que no momento
anterior”, conta a pesquisadora.
Por meio
da terceira ferramenta – que mede a semelhança dos relatos a temas específicos
por meio da construção de mapas de similaridade semântica – foi possível
mensurar o quanto as palavras empregadas no relato estão próximas de termos
como “contaminação”, “limpeza”, “doença”, “saúde, “morte” e “vida”.
“Identificamos
que os sonhos do primeiro mês da quarentena estavam mais associados aos termos
contaminação e limpeza, mas não notamos diferença em relação à doença e saúde
ou morte e vida. Nossa interpretação é que, naquele momento, as pessoas
ainda estavam se adaptando às regras mais rígidas de higiene e ao medo da
contaminação. Possivelmente, o medo da morte e da doença não tenha aparecido
porque nenhum dos participantes ou familiares próximos tinha contraído a
doença até então”, avalia Mota.
Ao final
de um mês, os pesquisadores buscaram mensurar o grau de sofrimento mental de
todos os participantes por meio de escalas psicométricas – questionários
padronizados e validados adotados em muitos estudos da área.
“Todos os
voluntários apresentavam uma sintomatologia leve, mas havia uma grande variabilidade
entre eles. Ao correlacionar a severidade dos sintomas às peculiaridades que
aparecem nos relatos dos sonhos, notamos que os indivíduos que mais
mencionavam termos relacionados à limpeza eram os que mais estavam tendo
dificuldade para manter relações sociais de qualidade durante o primeiro mês de
quarentena e mais estavam sofrendo com isso. Esse achado indica uma adaptação
mais pobre à situação de isolamento social”, conta Mota.
Após o
término do experimento, os pesquisadores solicitaram aos voluntários que
avaliassem a experiência de observar os próprios sonhos ao longo de um mês. As
respostas foram pareadas entre sensações positivas (como esperança) e negativas
(como ansiedade).
Segundo
Mota, os aspectos negativos foram mais frequentes na avaliação dos indivíduos
cujos sonhos estavam mais relacionados aos termos “contaminação” e “limpeza”.
“De maneira geral, concluímos que foi um processo benéfico observar os sonhos
nesse momento de pandemia. É uma forma de olhar para nossas emoções e refletir sobre
o que estamos vivenciando e pode favorecer a busca por soluções”, avalia a
pesquisadora.
Para
Ribeiro, o estudo mostra que os sonhos refletiram de forma rápida e robusta as
mudanças impostas pela pandemia, confirmando a existência de uma continuidade
entre sonho e vigília defendida desde os estudos iniciais de Sigmund Freud
(1856-1939) e Carl Gustav Jung (1875-1961). “Aquilo que está na sua vida
onírica e diz respeito a essa emergência planetária se expressa como
sofrimento quando você está desperto. Esse achado reforça a ideia proposta por
Freud de que os sonhos são a via régia para o inconsciente e um material
particularmente rico para diagnóstico”, afirma o pesquisador.
O
artigo Dreaming during Covid-19 pandemic: Computational assessment of
dreams reveals mental suffering and fear of contagion pode ser
lido em https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.05.19.20107078v2.
Karina Toledo
Fonte:
Agência
FAPESP
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