A pandemia do novo coronavírus e a crise que
estamos presenciando deixam muito claro como as decisões do presente têm um
impacto enorme em nosso futuro. A afirmação é evidente. Contudo, essa evidência
esconde uma complexa e importante relação entre a realidade e os modelos
científicos que usamos para tentar explicá-la e compreendê-la.
No domínio do direito antitruste, é frequente a
utilização de modelos científicos para analisar aspectos relevantes da
concorrência em um determinado mercado. A maioria desses modelos busca
contribuir para a identificação do grau de concentração de um mercado em torno
de poucos agentes econômicos, bem como do poder que esses agentes possuem para,
individualmente ou em conjunto, influenciar esse mesmo mercado.
Ao analisar atos de concentração de empresas, como
fusões e aquisições, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)
costuma recorrer a esses modelos para tomar suas decisões. A análise realizada
pelo Cade nesses casos consiste, fundamentalmente, em estabelecer uma comparação
entre dois cenários do mercado: o cenário real, existente antes da
concentração, e um cenário hipotético, de como o mercado seria após ela
ocorrer.
Ao longo dos últimos 15 anos, o Cade autorizou
diversos atos de concentração no mercado bancário, todos supostamente
corroborados pelos modelos de análise de atos de concentração (Santander-Real,
Itaú-Unibanco e Bradesco-HSBC, para ficar em alguns exemplos). Atualmente,
convivemos em um cenário no qual os 5 principais bancos do país – dois
deles pertencentes ao Estado – dominam mais de 80% dos ativos e dos depósitos
bancários. Nos Estados Unidos, os 5 maiores bancos concentram menos de 50% do
mercado.
Seria possível voltar nossa análise para os
modelos, para falarmos de oligopólio e de teorias econômicas que possam
explicar eventuais falhas de mercado existentes no setor bancário. Nosso
objetivo, porém, não é explicar as falhas, mas apenas mostrar que elas são
facilmente identificadas se olharmos para a nossa realidade. E, falando dela,
podemos ter a certeza de que, caso algum modelo não indique falhas na
concorrência do setor bancário, ou não somos capazes de entendê-lo ou, então, o
modelo está errado.
Em um contexto de concorrência perfeita, as
empresas vendem por um preço igual ao custo de produzir mais uma unidade de seu
produto. No caso dos bancos, boa parte de seu custo diz respeito à obtenção de
dinheiro, pagando juros que costuma ser próximo ao da taxa básica (SELIC). Na
outra ponta, os bancos vendem dinheiro a juros, esse é o seu “produto”. A
diferença entre a SELIC e os juros que pagamos para os bancos é chamada de
spread bancário.
Nosso spread é o segundo maior do mundo. Perdemos apenas para
Madagascar.
Costuma-se justificar esse problema a partir da
alta taxa de inadimplência e da baixa efetividade na recuperação dos créditos.
Esse argumento, porém, cai por terra quando se constata que, mesmo nas crises
econômicas vividas nos últimos 15 anos, em que bancos mundo afora quebraram ou
tiveram prejuízo, os lucros dos bancos brasileiros não pararam de crescer. Das
cinco empresas de capital aberto do país com maior lucro em 2019, quatro são
bancos. A Caixa Econômica Federal só não está na lista porque não tem o capital
aberto. Se estivesse, ocuparia o quarto lugar. Juntos, os cinco grandes bancos
lucraram mais de R$ 100 bilhões no ano passado.
Mas não é só. Em março deste ano, o Banco Central
anunciou medidas que injetaram R$ 1,2 trilhão no mercado, ampliando a liquidez
dos bancos. Essa disponibilidade gigantesca de recurso, em um mercado
competitivo, deveria produzir maior oferta de empréstimos a juros menores – os
Bancos disputariam mercado. Em razão da crise atual, há ainda a expectativa de
novas medidas, indicando a disponibilidade de mais de R$ 600 bilhões. Nada
disso parece ser suficiente. Qualquer empresário que precisa de crédito para
enfrentar a crise já percebeu: a oferta não aumentou e, aproveitando a crise,
os juros cobrados estão mais altos. O oligopólio dos bancos controla o mercado.
A disponibilidade de recursos não impacta na curva de oferta, apenas no aumento
da demanda. Assim, com a crise, os empréstimos ficaram mais caros. Como se tudo
isso não fosse suficiente, ainda há indícios de que os bancos formaram cartéis
no mercado de câmbio nacional e internacional, motivo pelo qual estão sendo
investigados pelo Cade.
O resultado é desastroso: os consumidores,
industriais, produtores rurais, comerciantes e autônomos brasileiros, que movem
o país por meio da produção e aquisição de bens e serviços, são estrangulados
por um mercado de crédito perverso. Um mercado que paga pouco pelo nosso
dinheiro e que vende seu dinheiro mais caro do que quase todos os outros bancos
do mundo. Um mercado que não conhece a crise econômica que todos nós vivemos
nos últimos anos e que, diante dela, ganha ainda mais dinheiro. Há muito tempo
pagamos, com juros, o preço das escolhas e dos modelos errados que fizemos no
passado. Não há economia que possa crescer se a produção e o consumo são reféns
do capital financeiro. Desta vez, num contexto de crise, o preço que vamos
pagar por esses erros será ainda mais alto. Os bons modelos mostrarão isso no
futuro.
Adriano Camargo Gomes -
advogado, doutor pela USP, mestre pela Universidade de Oxford, é professor da
Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo
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