Kierkegaard dizia que “quando a morte é o maior
perigo, se espera na vida, mas quando nos vemos diante de um perigo ainda
maior, se espera na morte.
Quando este perigo é tão grande que a morte se torna
uma esperança, o desespero é a desesperança de não poder nem mesmo morrer”. É
exatamente este o enredo triste a que o mundo todo assistiu no caso de Charlie
Gard, portador de uma síndrome genética raríssima – miopatia mitocondrial
provocada por uma depleção no gene RRM2B – que provoca perda progressiva da
força muscular e danos cerebrais irreversíveis. A Justiça britânica determinou
a transferência do bebê a uma clínica, onde os aparelhos de ventilação seriam
desligados; no dia seguinte, a família confirmou a morte de Charlie.
Infelizmente, atrás desta situação humana
dramática, existe uma série de questionamentos bioéticos, e que começaram
quando a família quis levar o pequeno Charlie para os Estados Unidos, na busca
de um tratamento experimental. É lícito e desejável que se busquem tratamentos
experimentais em situações extremas, porém também é fato que existem limites
clínicos impostos pelas condições do paciente e pelas evidências científicas. E
isto foi colocado pela equipe médica. Questões delicadas sobre a
irreversibilidade do quadro e sobre prologar o sofrimento de maneira
desnecessária entraram em conflito, aqui, com a autonomia dos pais em decidir
sobre o destino do filho. É frequente a esperança de um milagre por parte dos
familiares e pacientes, mas esta questão não é passível de ser dimensionada nas
decisões clínicas. Tanto que os pais, resignados, retiraram o apelo às
autoridades judiciais britânicas para transferir o filho. Chris e Connie
tentaram, em vão, levar Charlie para casa para que ele pudesse morrer em paz.
A gravidade e a irreversibilidade da condição
clínica a que chegou o menino nos levam a refletir sobre os valores envolvidos
e se, de fato, as condutas que foram sendo tomadas são proporcionais ao caso em
questão. Sim, porque o grande problema que necessita ser respondido aqui, tanto
em ciência quanto em consciência, é a questão da proporcionalidade terapêutica.
Tratamentos desproporcionais levam ao que nós denominamos de futilidade ou
obstinação terapêutica. Ou seja, tratamentos inúteis ou desnecessários e que
trazem apenas mais sofrimento ao sofrimento. A retirada de maneira voluntária e
direta de aparelhos que sustentam a vida de pacientes, por outro lado, pode ser
considerada como eutanásia, quando o objetivo é de abreviar a vida e o alívio
do sofrimento. Deixar a doença seguir sua evolução natural, com a morte
acontecendo naturalmente, é ortotanásia, ou seja, a morte no tempo certo.
Autorizar os pais a levar seu filho para casa, então, seria eutanásia ou
ortotanásia?
Zygmunt Bauman coloca que os nossos são tempos de
ambivalência moral. O pluralismo das normas nos oferece uma liberdade de
escolha jamais gozada antes, mas também nos lança em um estado de incerteza que
jamais foi tão angustiante. Ansiamos por um guia em que possamos confiar, mas
nenhuma autoridade – religião ou Estado – é poderosa o bastante para nos
oferecer a segurança necessária. E, se de fato existir uma solução para o
enigma de um código de ética ou um valor que possa ser considerado como
universal, ele seria baseado na natureza humana. Esta natureza, para Bauman, é
o próprio potencial humano, o potencial não realizado. Nossa missão, assim,
seria harmonizar a realidade humana com a sua natureza. As pessoas, neste
modelo, não devem fazer o mal aos outros, porque está em seu próprio interesse.
É como se a liberdade de julgar e escolher necessitasse de uma força externa
que leve a pessoa a fazer o bem para sua própria salvação.
Viktor Frankl, psiquiatra austríaco, passou por
campos de concentração nazistas (a mãe, a esposa e o irmão foram assassinados
em Auschwitz), onde encontrou sua tese central sobre o sentido da vida, do
sofrimento e da psicologia humana.
Ele dizia que “tudo poderia ser retirado do
homem, menos uma última coisa, a última das liberdades humanas – escolher sua
atitude em qualquer circunstância, escolher o próprio caminho”. E que “o homem,
por força de sua dimensão espiritual, pode encontrar sentido em cada situação
da vida e dar uma resposta adequada”. Mas talvez sua teoria mais interessante,
e que possa ser aplicada aqui neste caso, seja a da desesperança. Ela é
colocada por ele em termos de uma equação matemática: D=S-P. Ou seja,
desesperança é igual sofrimento menos ausência de propósito.
A equipe médica e a corte britânica agiram
corretamente? A sequência de fatos que culminou com o desligamento dos
aparelhos é um mal necessário ou um bem neste caso? O direito à
autodeterminação, à autonomia, pode ser superior às evidências científicas que
demonstram que determinados tratamentos são desnecessários ou mesmo danosos?
Seria melhor para Charlie ter seus aparelhos desligados com a supervisão
médica, em ambiente controlado, ou em casa, sem a devida assistência? O
princípio da proporcionalidade terapêutica, dentro do que foi apresentado na
mídia, parece ter sido respeitado aqui. O deslocamento para um tratamento
experimental só seria justificável se o quadro clínico fosse compatível com uma
expectativa de melhora. O desligamento dos aparelhos em um ambiente inadequado
e desassistido pode gerar mais desconforto e dor. Por fim, não é eutanásia
desligar os aparelhos neste caso. É ortotanásia. É deixar a doença seguir seu
curso natural, e não prolongar o sofrimento de maneira desnecessária.
A esperança, então, não é a última que morre. Ao
contrário, é a falta dela. A ausência de propósito, em um sofrimento prolongado
e irreversível de um ser humano inocente. Uma vida breve e que deixou uma
dolorosa pergunta sem resposta. Talvez a central da nossa frágil existência
humana, a fundamentação não fundada que carregamos no nosso espírito. A do
sofrimento sem sentido.
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