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sexta-feira, 20 de outubro de 2017

A esperança não é a última que morre



Kierkegaard dizia que “quando a morte é o maior perigo, se espera na vida, mas quando nos vemos diante de um perigo ainda maior, se espera na morte.

 Quando este perigo é tão grande que a morte se torna uma esperança, o desespero é a desesperança de não poder nem mesmo morrer”. É exatamente este o enredo triste a que o mundo todo assistiu no caso de Charlie Gard, portador de uma síndrome genética raríssima – miopatia mitocondrial provocada por uma depleção no gene RRM2B – que provoca perda progressiva da força muscular e danos cerebrais irreversíveis. A Justiça britânica determinou a transferência do bebê a uma clínica, onde os aparelhos de ventilação seriam desligados; no dia seguinte, a família confirmou a morte de Charlie.

Infelizmente, atrás desta situação humana dramática, existe uma série de questionamentos bioéticos, e que começaram quando a família quis levar o pequeno Charlie para os Estados Unidos, na busca de um tratamento experimental. É lícito e desejável que se busquem tratamentos experimentais em situações extremas, porém também é fato que existem limites clínicos impostos pelas condições do paciente e pelas evidências científicas. E isto foi colocado pela equipe médica. Questões delicadas sobre a irreversibilidade do quadro e sobre prologar o sofrimento de maneira desnecessária entraram em conflito, aqui, com a autonomia dos pais em decidir sobre o destino do filho. É frequente a esperança de um milagre por parte dos familiares e pacientes, mas esta questão não é passível de ser dimensionada nas decisões clínicas. Tanto que os pais, resignados, retiraram o apelo às autoridades judiciais britânicas para transferir o filho. Chris e Connie tentaram, em vão, levar Charlie para casa para que ele pudesse morrer em paz.

A gravidade e a irreversibilidade da condição clínica a que chegou o menino nos levam a refletir sobre os valores envolvidos e se, de fato, as condutas que foram sendo tomadas são proporcionais ao caso em questão. Sim, porque o grande problema que necessita ser respondido aqui, tanto em ciência quanto em consciência, é a questão da proporcionalidade terapêutica. Tratamentos desproporcionais levam ao que nós denominamos de futilidade ou obstinação terapêutica. Ou seja, tratamentos inúteis ou desnecessários e que trazem apenas mais sofrimento ao sofrimento. A retirada de maneira voluntária e direta de aparelhos que sustentam a vida de pacientes, por outro lado, pode ser considerada como eutanásia, quando o objetivo é de abreviar a vida e o alívio do sofrimento. Deixar a doença seguir sua evolução natural, com a morte acontecendo naturalmente, é ortotanásia, ou seja, a morte no tempo certo. Autorizar os pais a levar seu filho para casa, então, seria eutanásia ou ortotanásia?

Zygmunt Bauman coloca que os nossos são tempos de ambivalência moral. O pluralismo das normas nos oferece uma liberdade de escolha jamais gozada antes, mas também nos lança em um estado de incerteza que jamais foi tão angustiante. Ansiamos por um guia em que possamos confiar, mas nenhuma autoridade – religião ou Estado – é poderosa o bastante para nos oferecer a segurança necessária. E, se de fato existir uma solução para o enigma de um código de ética ou um valor que possa ser considerado como universal, ele seria baseado na natureza humana. Esta natureza, para Bauman, é o próprio potencial humano, o potencial não realizado. Nossa missão, assim, seria harmonizar a realidade humana com a sua natureza. As pessoas, neste modelo, não devem fazer o mal aos outros, porque está em seu próprio interesse. É como se a liberdade de julgar e escolher necessitasse de uma força externa que leve a pessoa a fazer o bem para sua própria salvação.

Viktor Frankl, psiquiatra austríaco, passou por campos de concentração nazistas (a mãe, a esposa e o irmão foram assassinados em Auschwitz), onde encontrou sua tese central sobre o sentido da vida, do sofrimento e da psicologia humana.

 Ele dizia que “tudo poderia ser retirado do homem, menos uma última coisa, a última das liberdades humanas – escolher sua atitude em qualquer circunstância, escolher o próprio caminho”. E que “o homem, por força de sua dimensão espiritual, pode encontrar sentido em cada situação da vida e dar uma resposta adequada”. Mas talvez sua teoria mais interessante, e que possa ser aplicada aqui neste caso, seja a da desesperança. Ela é colocada por ele em termos de uma equação matemática: D=S-P. Ou seja, desesperança é igual sofrimento menos ausência de propósito.

A equipe médica e a corte britânica agiram corretamente? A sequência de fatos que culminou com o desligamento dos aparelhos é um mal necessário ou um bem neste caso? O direito à autodeterminação, à autonomia, pode ser superior às evidências científicas que demonstram que determinados tratamentos são desnecessários ou mesmo danosos? Seria melhor para Charlie ter seus aparelhos desligados com a supervisão médica, em ambiente controlado, ou em casa, sem a devida assistência? O princípio da proporcionalidade terapêutica, dentro do que foi apresentado na mídia, parece ter sido respeitado aqui. O deslocamento para um tratamento experimental só seria justificável se o quadro clínico fosse compatível com uma expectativa de melhora. O desligamento dos aparelhos em um ambiente inadequado e desassistido pode gerar mais desconforto e dor. Por fim, não é eutanásia desligar os aparelhos neste caso. É ortotanásia. É deixar a doença seguir seu curso natural, e não prolongar o sofrimento de maneira desnecessária.

A esperança, então, não é a última que morre. Ao contrário, é a falta dela. A ausência de propósito, em um sofrimento prolongado e irreversível de um ser humano inocente. Uma vida breve e que deixou uma dolorosa pergunta sem resposta. Talvez a central da nossa frágil existência humana, a fundamentação não fundada que carregamos no nosso espírito. A do sofrimento sem sentido.





Cicero Urban - médico oncologista e mastologista, é vice-presidente do Instituto Ciência e Fé e coordenador acadêmico do curso de Medicina da Universidade Positivo.



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