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terça-feira, 17 de outubro de 2017

Os reflexos da judicialização da Saúde no Brasil



As relações humanas estão completamente judicializadas. São inaugurados por ano no Brasil, de acordo com o último senso “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 27 milhões de processos judiciais. É como se 13% dos brasileiros recorressem ao judiciário todos os anos.

O ser humano perdeu a capacidade de dialogar e de resolver os seus conflitos e os submete ao crivo do Poder Judiciário. Deixamos que um juiz togado resolva praticamente todos os nossos dramas pessoais, nossas questões domésticas e relações interpessoais com fornecedores, prestadores de serviços, vizinhos, condôminos, sócios, empregadores e até mesmo os parentes mais próximos.

Ainda pela nossa latente incapacidade proposital de fazer uma simples conta de dividir, deixamos o juiz decidir o destino dos nossos bens, por ocasião do divórcio, de uma sucessão matrimonial ou da morte de um ente querido. Submetemos ao juiz a decisão sobre a guarda de filhos menores e quanto cada um necessita ou merece consumir de alimentos, como se nós não soubéssemos quais as necessidades e qual a nossa capacidade de pagamento.

Em 2016, cada juiz brasileiro julgou 1.873 processos, em média. São quase dez processos a cada dia útil. E o estoque de processos pré-existentes, pendentes de decisão, chega a quase 9 mil por juiz. Isso significa que, se o Judiciário fechasse as portas à recepção de novos processos até zerar o estoque, seriam necessários cinco anos de trabalho concentrado para dar cabo ao estoque atual. A taxa de congestionamento de todo o Poder Judiciário brasileiro beira os 70%.

Das 27 milhões de novas demandas inauguradas em 2016, mais de 600 mil se referem ao direito da saúde e vão desde o pleito de uma vaga na UTI, à importação de um medicamento de alto custo, realização de um procedimento cirúrgico (furando a fila), transplante de um órgão (também se antecipando ao ritmo normal), cobertura pela operadora de um procedimento não constante no rol dos procedimentos obrigatórios ou não contratado pelo usuário, o fornecimento de um medicamento não testado e não aprovado pela ANVISA, ainda na fase de testes (lembremos do recente caso da fostoetanolamina, ou “a pílula do câncer da USP”) até ações indenizatórias por danos materiais, morais, estéticos e existenciais provocados por um tratamento médico-hospitalar mal sucedido.

Essa última temática, que questiona a má prática ou a negligência médica, representa um dos temas que mais tem crescido a cada ano. E a tendência é que cresça ainda mais. No próximo ano, por exemplo, chegaremos a 310 escolas de Medicina no Brasil. Já temos, atualmente, 28.106 alunos matriculados no primeiro ano de curso. Alguns deles serão “falquejados a machado e à chavasca”, pois grande parte dessas novas escolas não tem docência e nem decência.

Em 2020, superaremos os 500 mil médicos em atividade no Brasil e, em 2025, teremos 1,2 milhão. Grande parte deles estará, certamente, dirigindo Uber, enquanto os outros trabalharão por honorários vis em condições profissionais sub-humanas.
Entre os países que optaram pelo acesso universal ao sistema público de saúde, o Brasil é o que menos investe. Enquanto o Reino Unido investe 3.600 libras por ano por habitante e a Austrália 4.500 dólares, nós investimos menos de US$ 450/ano por habitante em saúde (um dólar e vinte e três centavos por dia). Isso é menos da metade do que investe o nosso “vizinho pobre”, a Argentina, onde são gastos por ano 980 dólares por habitante em saúde.

De acordo com o Ministério da Saúde, anualmente 434 mil pessoas são vítimas de eventos adversos (o paciente chega ao hospital para tratar de uma moléstia e morre por outra causa, contraída ou desenvolvida no ambiente hospitalar ou em decorrência do tratamento). Dessas mortes, segundo a Federação Brasileira dos Hospitais, 110 mil ocorrem por infecção hospitalar, sendo que 70% delas seriam evitáveis. Segundo estudos da Anadem (Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética), há, por ano 67 mil mortes obstétricas no Brasil (morte fetal, neonatal ou da parturiente), sendo que 40% delas também seriam evitáveis, mediante a observação de simples protocolos.

Todos esses fatores tendem a provocar um aumento cada vez maior das demandas judiciais sobre essa temática. Já passou o tempo de o CNJ determinar a criação de varas especializadas em direito da saúde, não apenas na esfera da fazenda pública, mas também na área cível, pelo que a Anadem vem postulando há mais de uma década.





Raul Canal - advogado e presidente da Anadem (Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética)



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