Especialistas apontam inconstitucionalidade na
criminalização do aborto e defendem sua realização em qualquer circunstância, como forma de redução da mortalidade e do número de abortos no país
Nas últimas
semanas, foi reaceso o debate acerca do aborto. Um jornal de grande circulação
chegou a abordar o tema em seu editorial, defendendo que o governo federal
realize um plebiscito para discutir sua descriminalização. No dia seguinte, a
Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou uma recomendação defendendo a
flexibilização dos mecanismos legais para a permissão do aborto, visando os
casos relacionados ao zika e à microcefalia.
Para o médico
ginecologista e obstetra Dr. Thomaz Rafael Gollop, coordenador do Grupo de
Estudos sobre o Aborto (GEA), toda esta movimentação é positiva
e o assunto deve ser amplamente debatido, pois a população ainda carece de
informações sobre o tema.
"Nenhum
Estado ou lei no mundo deve interferir em uma questão tão particular,
obrigando uma mulher a ter um filho indesejado. Cada um tem suas ponderações,
valores éticos e morais, que devem ser respeitados. De acordo com
a atual legislação, hoje assistimos passivamente uma gestante interromper sua
gravidez colocando a sua vida em risco e, depois disso, ao invés de
acolher esta mulher, ela é julgada e penalizada."
É importante
salientar que, dos 65 serviços de abortamento legal teoricamente
existentes no Brasil, muitos, infelizmente, não fornecem assistência
integral às vítimas de violência, sejam elas
mulheres, homens ou crianças.
"É necessário,
urgentemente, a ampliação destes serviços pelo Brasil afora", avalia
Dr. Thomaz.
Legislação
brasileira
O que está em
discussão atualmente é se o aborto deve seguir o Código
Penal vigente, incriminando as mulheres que a ele recorrem.
De acordo
com o Código Penal brasileiro, a mulher que pratica o aborto, com
exceção dos casos já legalizados, será punida com pena de detenção de um
a três anos.
Em
decisão recente, o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou a prisão de cinco
pessoas detidas em uma operação da policia do Rio de Janeiro em uma clínica de
aborto clandestina, pois considerou que os artigos do Código
Penal que criminalizam o aborto, que são de 1940, são inconstitucionais, pois
violam os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, bem como o direito à autonomia
de fazer suas escolhas e o direito à integridade física e psíquica.
Para o
Dr. José Henrique Rodrigues Torres, Juiz de Direito Titular da 1ª Vara do Júri de
Campinas/SP, a decisão é importante,
mas ainda não é a ideal.
"Qualquer que seja
a circunstância do aborto, e não importa o tempo da gestação, a
criminalização da mulher deve ser entendida como inconstitucional e contrária ao
sistema de proteção dos direitos humanos. Mas, descriminalizar o aborto pelo
menos nos casos em que a mulher está no início da gestação já seria um avanço em direção ao acolhimento das mulheres e à garantia
de seus direitos."
O Juiz alerta para outro grande
absurdo, nos casos em que a denúncia é realizada por um médico que atendeu
a gestante com complicações resultantes de um aborto inseguro.
"Estes processos
não deveriam ser aceitos, pois a prova é ilícita,
visto que implica uma violação do sigilo médico. Além de
impedir o processo contra a mulher nestas situações, o correto seria gerar a
responsabilidade do médico pela violação do sigilo", afirma
Dr. Torres.
Aborto em
números
"É importante lembrar que ocorrem cerca de 300
mortes maternas por ano no Brasil e que o aborto inseguro é a quinta
causa de mortalidade materna. Em algumas localidades, como Salvador, é a
primeira causa", adverte Dr. Thomaz.
Estas mortes são consequências das
mais de 500 mil mulheres que recorrem ao aborto a cada ano, no Brasil,
associado à má assistência no aborto inseguro, que é a segunda
causa de internações em Ginecologia no SUS.
"O aborto
clandestino traz outras consequências graves, como a esterilidade, infecções, perfuração em
órgãos e hemorragias", destaca Dr.
Thomaz.
De acordo
com a edição 2005 da Norma Técnica de Atenção
Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde, o
resultado deste cenário foram as cerca de 244 mil internações motivadas por
curetagens pós-aborto realizadas somente em 2004, decorrentes de
abortamentos espontâneos e inseguros, orçadas em pouco mais de R$ 35 milhões.
Este
valor seria reduzido drasticamente com a alteração da legislação, que
hoje mantém as curetagens na segunda posição entre os procedimentos
obstétricos mais praticados nas unidades de internação, superadas, apenas, pelos
partos.
Penalização
do aborto: uma sentença de morte
A penalização do
aborto não é uma
medida de proteção à vida,
muito pelo contrário. No Brasil, a atual legislação coloca as gestantes,
especialmente as de baixa renda, em situação de risco. O aborto inseguro é, hoje,
um grave problema de saúde pública, figurado como a quinta causa de óbito
materno no Brasil.
Para Dr.
Torres, a criminalização do aborto em qualquer momento é inconstitucional,
pois viola os princípios dos direitos humanos.
"É muito claro que
criminalização e assistência à saúde da mulher são incompatíveis.
Isso é afirmado pelo sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
Descriminalizar o aborto, sim, é colocar o sistema de saúde à disposição das
mulheres, permitindo a criação de políticas públicas de
atendimento, de acolhimento, acesso aos meios anticonceptivos, educação sexual
reprodutiva. Com isso, evitamos a gravidez indesejada e também o
aborto."
Prova disso está nos números
registrados em países que descriminalizaram o aborto. Uma das consequências
diretas é a queda no número de abortos,
além, é claro, da redução da mortalidade materna.
O aborto
no mundo
A Romênia
experimentou os dois lados da moeda em um passado não muito distante e pôde, na
prática, verificar o impacto da legalização do aborto. Em 1966, com o objetivo
de aumentar a sua população, restringiu o aborto legal, que até então era
permitido. A medida foi um fracasso: enquanto as taxas de natalidade
mantiveram-se inalteradas, a mortalidade de mulheres grávidas por
abortos clandestinos aumentou substancialmente.
A taxa de mortalidade materna
triplicou nos quatro anos seguintes, assim como a mortalidade infantil, que
passou a ser uma das mais altas da Europa. Do outro lado, a Holanda tem a taxa
de aborto mais baixa da Europa, mesmo sendo permitido sem restrições.
Observando países mais
próximos do nosso, o Chile aprovou em março deste ano um
projeto de lei autorizando o aborto nos casos de risco de morte para a mãe,
inviabilidade do feto ou gravidez resultante de estupro. Trata-se de um avanço,
considerando que o Chile é um dos poucos países do mundo onde
o aborto ainda é proibido em qualquer circunstância, ao
lado de El Salvador, Nicarágua, República Dominicana, Malta e Vaticano.
No México, a
legislação depende de cada estado. Alguns contemplam penas de prisão, mas na
capital, Cidade do México, as mulheres podem interromper a gravidez antes da
12ª semana, desde 2007.
O melhor
exemplo entre os nossos vizinhos certamente é o
Uruguai, onde desde 2012 o aborto é permitido durante as primeiras 12 semanas de gestação. O
resultado imediato da medida foi a brusca queda dos números de
mortalidade materna, que ainda hoje é próxima de
zero.
"O Uruguai
é um país latino e católico como o
nosso, com uma série de questões sociais e dificuldades, mas conseguiu
resolver este grande problema, que é a mortalidade
materna", afirma o Dr. Thomaz.
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