Além do processo evolutivo natural dos
microrganismos, prescrição inadequada e o uso incorreto dos medicamentos
produzem bactérias super-resistentes
Quando
o cientista escocês Alexander Fleming descobriu acidentalmente em 1928 que o
fungo Penicillium notatum era capaz de neutralizar a ação de uma bactéria
responsável por infeccionar feridas em soldados, ele causou uma verdadeira
revolução na área da saúde. Fleming desvendara o princípio para a criação do
primeiro antibiótico da história: a penicilina. A partir daí, novos fungos com
esse potencial começaram a ser encontrados e novas substâncias foram
desenvolvidas. O mundo vivia a era dos antibióticos, em que a maior parte das
doenças infecciosas encontrava tratamento.
Mas
como qualquer organismo vivo a bactéria também evolui. O farmacêutico,
bioquímico e pós-doutor em Microbiologia, Alessandro Silveira, enfatiza que, à
medida que as pessoas utilizam os antibióticos, as bactérias criam mecanismos
para se defenderem, desenvolvendo resistência aos medicamentos. "Trata-se
de um fenômeno natural", afirma.
Silveira
destaca que, além desse processo evolutivo natural, existem outros fatores que
tornam os microrganismos mais resistentes aos antibióticos. Aspectos referentes
à prescrição e ao uso inadequados diminuem a vida média destes medicamentos. O
pós-doutor em Microbiologia cita quatro situações em que isso pode ocorrer:
indicação para tratamento de infecções que não são bacterianas, virais, por
exemplo; indicação de antibiótico de amplo espectro; uso incorreto da dose; e
uso em intervalo de tempo inadequado.
Prescrição
do antibiótico
No
primeiro caso, trata-se de uma questão cultural. Muitas vezes, premido pela
mãe, que leva o filho ao pronto-socorro, o médico receita o antibiótico para
tratamento de uma faringite, que 80% das vezes tem como agente causador um
vírus. Para ter certeza de que a doença está sendo provocada realmente por uma
bactéria, é necessário exame laboratorial, – de cultura e antibiograma – cujo
resultado pode demorar até três dias. Como a criança está sofrendo, com febre,
dor, prostrada, o médico indica o antibiótico. "Se a infecção for
bacteriana, o remédio adiantará, se for viral, os sintomas desaparecerão
independentemente do antibiótico, com repouso e hidratação", explica
Silveira.
A
indicação do antibiótico ideal para o tratamento de determinada infecção
demanda tempo que às vezes não existe, seja porque a doença é grave, por
exemplo, no caso de pneumonias associadas à ventilação mecânica, seja porque os
sintomas incomodam, como no caso de uma infecção urinária. "O médico
praticará então a chamada terapia empírica, aquela em que não se sabe
exatamente qual é a sensibilidade da bactéria ao antibiótico antes de iniciar o
tratamento", informa Silveira. Nesse tratamento é utilizado um medicamento
de amplo espectro, que consiga atingir o maior número de bactérias possível.
Quando o resultado do antibiograma é liberado, o médico está apto a adotar um
remédio mais específico.
No
sentido de facilitar a prescrição adequada do antibiótico é de grande valia, de
acordo com o bioquímico, as informações geradas pelo laboratório de
bacteriologia a respeito da prevalência da epidemiologia local. Por exemplo,
tendo em mãos uma série histórica demonstrando qual a principal bactéria
associada à determinada infecção do hospital em que trabalha, o médico pode
direcionar sua terapia empírica, ou seja, utilizar menos o antibiótico de amplo
espectro e mais o antibiótico adequado para aquela infecção.
Segundo
o pós-doutor em Microbiologia, outro fator importante que contribuiu bastante
para a diminuição do uso inapropriado de antibióticos e que merece ser
destacado é a resolução RDC 44, de 26 de outubro de 2010, da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa). A medida restringiu a compra desses
medicamentos ao tornar obrigatório a apresentação de receita médica.
"Anteriormente, os antibióticos podiam ser adquiridos livremente na
farmácia", explica.
A
fim de melhorar a eficácia da indicação dos antibióticos adquire cada vez mais
relevância o conceito de stewardship, que significa utilizar da melhor forma
possível o arsenal terapêutico disponível para o combate de infecções
bacterianas. A prática se caracteriza pela utilização do mesmo antibiótico por
outras vias; pelo cálculo da dose a partir de modelos matemáticos; pelo controle
do número de infecções no hospital por bactérias que normalmente são
favorecidas pelo uso de determinado antibiótico etc.
Uso
do antibiótico
A
questão da dosagem do antibiótico está relacionada ao uso inadequado do
medicamento. Ao invés de ingerir o antibiótico no intervalo de tempo correto,
por exemplo, a cada oito horas, conforme escrito na bula, o paciente toma com
um hiato de 12 horas. Silveira explica que, a partir de um determinado período,
a concentração do antibiótico que tem efeito contra a bactéria se torna abaixo
do mínimo necessário e o medicamento começa a perder sua atividade. "Nesse
momento, a resistência bacteriana tende a aumentar, por isso a necessidade de
tomar uma nova dose.", diz.
Além
de tomar o antibiótico no intervalo de tempo incorreto, o paciente costuma
fazer uso do medicamento durante menos dias do que o recomendado. O bioquímico
afirma que se o antibiótico foi receitado para ser tomado em sete dias, o
tratamento não pode ser interrompido após três dias, por exemplo, apenas por
que houve melhora do quadro clínico. "É preciso fazer o tratamento pelo
tempo prescrito, porque, se não, a probabilidade das bactérias ficarem mais
resistentes ao antibiótico se torna maior", enfatiza.
Contribui
ainda para o aumento da resistência das bactérias aos antibióticos, o uso
destes visando ao tratamento e à promoção de crescimento (engorda) de
animais de corte, principalmente bovinos, suínos e aves. "Aproximadamente
80% de todo o antibiótico produzido no mundo vai para a medicina veterinária,
principalmente para ração", diz o pós-doutor em Microbiologia. Conforme
Silveira, os antibióticos estão disseminados na natureza, já que as fezes dos
animais são espalhadas pelo solo e na água dos rios que regam as plantas.
Isso
acarreta um fato curioso: a resistência de bactérias a antibióticos
recém-lançados. Pois, embora não tenham sido utilizados na terapia clínica
humana, muitos destes medicamentos são regularmente empregados no tratamento de
animais. Ao se alimentarem da carne de boi, porco ou frango, as pessoas entram
em contato com os antibióticos ali presentes e suas bactérias evoluem para se
tornarem resistentes a eles.
Todos
os pontos acima destacados fazem com que as pessoas usem mais antibióticos do
que deveriam, promovendo a seleção natural das bactérias que colonizam o
organismo humano. "Alguns microrganismos não são eliminados pelos
antibióticos e se fortalecem cada vez que o medicamento volta a ser utilizado.
Torna-se um processo cíclico", diz o pós-doutor em Microbiologia.
Silveira
explica que, além dos organismos que causam a infecção, o antibiótico eliminará
as bactérias que são benéficas ao nosso organismo, podendo levar a uma disbiose
intestinal, que é o desequilíbrio da flora bacteriana do intestino. Nesse
processo, alguns microrganismos que viviam em harmonia dentro do corpo humano
podem se tornar danosos, causando infecções e doenças.
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