Semana passada, num voto que antes da
metade já está sendo classificado como “histórico” por figurinhas do recinto,
Celso de Mello, ministro do STF, foi na esteira de Simone Beauvoir para
sustentar que não se nasce mulher. Tudo se passaria, creio, como se a linda e
cobiçada fêmea da nossa espécie viesse ao mundo com o destino dos pés de couve,
pronta para ser cozida, gratinada, frita, ou flambada. Feita ao gosto da
freguesia. Agora, inteiro-me sobre o filme que Wagner Moura rodou exaltando
Marighella e isso ajudou a fixar, em mim, a ideia de que há uma distopia
convivendo conosco. Utopia já é coisa complicada. Utopia pelo avesso, então...
Entendam-me. Wagner Moura pode filmar a
história que quiser. Eu exercitarei minha liberdade de não assistir. Pode
fantasiar quanto entender sobre esse terrorista, autor do Minimanual do
Guerrilheiro Urbano. Pode apresentá-lo branco, negro ou ruivo, como lhe
convier, que eu não me importo. Esquerdistas de meu convívio explicaram-me que
isso não é desonestidade intelectual, mas “liberdade de criação artística”. Meu
espanto é que denotaria preconceito. Tudo isso me falaram enquanto
conversávamos, eu no meu quadrado e eles ali, à porta de sua distopia.
Quando reconhecemos o que estou
descrevendo, que muitos brasileiros vivem num mundo imaginário, etéreo,
desconfigurado, os contornos da realidade, paradoxalmente, se alargam. A gente
começa a entender por que o auditório de Wagner Moura, distante 10.572
quilômetros da carceragem de Curitiba, ecoou frases de ordem por Lula livre,
por que Jean Wyllys foi a Berlim e por que era imperioso mencionar Marielle
Franco. Graças à distopia, a OAB é contra Sérgio Moro e os ministros do STF
fazem o que fazem. Ela também permite entender o motivo pelo qual crimes praticados por bandidos reais
são minimizados pelos mesmos políticos e magistrados que buscam criminalizar a
incivilidade de cidadãos comuns, posto que efetivos crimes motivados por
preconceito, crimes já são.
A
distopia, espreitando à sua porta eu vi, funciona como um grande ventre moedor
da história. A tragédia que a esquerda brasileira produziu no Brasil vira um
sonho de liberdade que morreu na eleição de outubro passado. É a tristeza
imensa das bandeiras vermelhas! Entram fatos e saem símbolos, aqueles são
digeridos para que estes sejam produzidos. Mundo afora, milhões de cadáveres
são incinerados no anonimato para que uns poucos, os escolhidos, sirvam aos
poderes distópicos. Por isso, o filme Trotsky os incomodou tanto, como escrevi em
“Trotsky, por que os comunistas detestam o filme”. Bibliotecas inteiras ganham
a lixeira do desprezo para que raros fatos, também eles escolhidos, trabalhados
na ourivesaria das versões, se convertam em discurso, aula, sermão, vídeo,
slogan e filme (sempre à custa de quem vai ser enganado por tais peças).
Na mesa dos acontecimentos, sabe-se que
todas as dezenas de organizações que atuaram na clandestinidade contra os
governos militares, entre elas a ALN de Marighella, lutavam pela instalação no
país de um regime comunista cuja vitória era buscada com instrumentos de
guerrilha e terrorismo. As palavras democracia e liberdade, hoje tão
apaixonadamente pronunciadas quando há referências ao período, eram solenes
ausências, desprezíveis plataformas burguesas que não apareceram sequer quando
os sequestradores do embaixador norte-americano obrigaram o governo a autorizar
a leitura de um manifesto em
cadeia nacional de rádio e TV. Uma oportunidade de ouro para afirmar
compromissos com democracia e liberdade! No entanto, nenhuma dessas palavras é
mencionada. O longo texto só fala em luta, assaltos, guerra e violência
revolucionária.
Por isso, nunca houve o mais tênue apoio
popular às organizações guerrilheiras e terroristas que hoje produzem esses
memoriais distópicos de realidades e motivações que nunca existiram. Não é por
acaso que o regime cubano sempre foi referência e que, mesmo depois de criar o
inferno na Venezuela, o “bolivarianismo” permanece no altar das devoções.
Percival Puggina - membro da Academia
Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org,
colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o
totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do
Brasil. Integrante do grupo Pensar+.