Se você nunca conheceu pessoalmente ou conversou com algum dos profissionais da “linha de frente” no combate à pandemia do novo coronavírus, muito prazer. Sou um deles. Nesses meses turbulentos, também somos movidos pela esperança. Acompanhei um caso que me emocionou demais. Uma jovem de 27 anos, ao se ver curada, correu feliz pelo hospital para abraçar cada integrante da nossa equipe e um em especial: a tecnologia. O equipamento que ajudou a salvar a sua vida.
A máquina faz parte da
terapia de ECMO, sigla em inglês de Oxigenação por Membrana Extracorpórea. Seu
objetivo é dar suporte. Quando o pulmão deixa de funcionar de forma adequada,
utiliza-se o “pulmão artificial”. Ele recebe o sangue, oxigena, retira gás
carbônico e o devolve ao organismo. Realiza as funções pulmonares, dando tempo
de o corpo se recuperar de lesões que causem insuficiências respiratórias ou cardiorrespiratórias.
Uma vez que o paciente se recupera, o equipamento é removido.
A ECMO não é só mecânica.
Seu maior diferencial é humano. Os cuidados da terapia são ainda mais complexos
do que em um ambiente normal de CTI. Há acompanhamento 24 horas por cirurgiões
cardíacos, médicos especialistas em ECMO e intensivistas, fisioterapeutas e
enfermeiros. Em um período que vai em média de duas a quatro semanas, é
essencial olhar de perto o paciente. Só a máquina não basta. Ainda que ela
funcione perfeitamente, o paciente pode falecer por infecções, sangramento,
piora de outro órgão, ou por não haver melhora do quadro de base. Inúmeras
variáveis.
A capacitação profissional
para a terapia pode levar anos. Autoridade maior em ECMO no mundo, a
Extracorporeal Life Support Organization (ELSO) credenciou até hoje no Brasil
apenas 29 centros médicos. Sua chancela, porém, não é pré-requisito
obrigatório. Tanto que, na rápida multiplicação da Covid, nem sempre a ECMO foi
aplicada por especialistas credenciados, usando os devidos cuidados, ou mais
familiarizados com a terapia. Essa banalização diminui as chances de sucesso.
Segundo números da ELSO, a taxa de mortalidade em centros especializados é de
50%. Fora deles, chega a 90%.
Ampliar o acesso à ECMO é
uma necessidade, mas exige responsabilidade. Algo complexo, que não dá para ser
indicado a qualquer paciente. O lado bom da história é que a pandemia ajudou a
divulgar a ECMO, antes desconhecida inclusive entre médicos. Espero que a fama
repentina incentive profissionais a se informarem quanto à indicação. E que os
centros tenham maior atenção com um recurso caro, que deve ser bem empregado.
Criada nos EUA, há mais de 40 anos, a ECMO não é nova no Brasil. É relevante no
apoio a cirurgias cardíacas e no atendimento a pacientes em quadros como
pneumonia severa, aspiração de mecônio por bebês e infecções pulmonares graves
com insuficiência respiratória refratária.
Embora seu custo ainda
seja alto, existe muito espaço no Brasil para que a terapia se desenvolva,
ajudando a salvar ainda mais vidas. A médio prazo, o próprio custo se dilui, já
que a ECMO apresenta tendência a reduzir a morbidade, como chamamos as sequelas
de uma doença. A técnica permite recuperar funções motoras e pulmonares com
muito mais facilidade, reduzindo o investimento em saúde e melhorando a
qualidade de vida das pessoas. São pontos importantes a se pensar para a
cobertura dos convênios e a disponibilidade do procedimento no Sistema Único de
Saúde (SUS).
Essa conversa não é
simples e nada tem a ver com o que ocorreu no mês passado, com a proposta na
Câmara dos Deputados de levar a ECMO a Hospitais de Campanha. A discussão por
certo não foi levantada por médicos especialistas. Possivelmente surgiu de
pessoas sem conhecimento – e talvez desesperadas por um recurso novo. Ter a
máquina de ECMO para uso indiscriminado e sem experiência pode ser perigoso, já
que a terapia está longe de ser isenta de riscos. Dessa maneira, pode ser
desperdício de recurso no afã de gerar esperanças milagrosas, que não existem
em Medicina.
A ECMO já tem cobertura de
alguns planos de saúde, que pode ser ainda maior com novos centros reconhecidos
pela ELSO. Quanto mais preparados estiverem os hospitais, maior a chance de
indicação correta e a segurança dos planos em cobrir a terapia. Na rede
pública, existe vontade para o uso da ECMO e nas últimas conversas sobre o tema
havia uma preocupação com que, dada a complexidade, essa terapia fosse
realizada em centros especializados, como a cirurgia cardíaca.
Sendo essa uma exigência,
vale estudar a melhor forma de implantá-la. O custo não pode ser barreira, pois
certos procedimentos e medicações oferecidos no SUS, no longo prazo, demandam
investimento mais alto que o da ECMO, em geral realizada uma vez.
A ECMO manteve o ator
Paulo Gustavo vivo por mais de 30 dias. No fim, algum fator extrapolou o
problema do pulmão, ao qual a ECMO dava apoio. Ao que tudo indica, sua morte
ocorreu por um quadro de embolia, relacionado às complicações da Covid-19, dada
a fragilidade do pulmão – lesionado pela doença. E, quando o problema extrapola
a questão pulmonar, a ECMO não resolve. Tampouco essa é sua função.
A luta do talentoso
comediante terminou de forma muito triste. Mas que, de alguma forma, ela possa
nos inspirar para fazer com que a ECMO chegue a um número cada vez maior de
brasileiros, devolvendo o sorriso aos pacientes e a seus
familiares.
Ana Luiza Valle Martins - médica
intensivista, Research Fellow Hospital Erasme Bruxelas-Bélgica e doutoranda do
Departamento de Fisiologia e Farmacologia da UFMG. Especialista em ECMO adulto
e pediátrico pela ELSO (Extracorporeal Life Support Organization), é diretora
clínica da ECMO Minas e atua nas UTIs do Hospital Mater Dei e do Hospital
Eduardo de Menezes (Rede Fhemig)
ECMO Minas
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