No Brasil, a caça a tatus
é uma atividade de risco para infecções, mas o perigo está também na
manipulação e no consumo da carne
O ciclo de infecção entre tatus e homem pode ocorrer pelo contato com sangue, por aerossol ou a partir de solo contaminado |
Em 2017, o caso de três pessoas de uma mesma
família residente em Serra Talhada, Sertão do Pajeú (PE), diagnosticadas com
coccidioidomicose acendeu um alerta para essa doença emergente. Foi a primeira
vez em que a enfermidade foi notificada no estado. A doença havia sido
diagnosticada principalmente no Piauí e no Ceará, com poucos casos no Maranhão
e raros na Bahia. No Piauí, a letalidade da doença foi de aproximadamente 8%. A
maior dificuldade em diagnosticar a infecção consiste em não considerá-la, uma
vez que a coccidioidomicose pode ser facilmente confundida com outras doenças.
Muitos casos podem ser erroneamente diagnosticados como pneumonia inespecífica
(os casos mais agudos) ou tuberculose (casos com sintomatologia mais arrastada)
e outros são certamente subdiagnosticados, já que a doença é pouco conhecida
pelos médicos e bioquímicos do Brasil e do Nordeste.
Mas afinal, o que as micoses sistêmicas, como a
coccidioidomicose e a paracoccidioidomicose tem a ver com o tatu? A Dra.
Lisandra Damasceno, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica
que a coccidioidomicose, causada pelo Coccidioides spp., acomete
pessoas que frequentemente realizam a caça do tatu, pois, os artroconídios,
estruturas filamentosas do fungo, encontradas no solo podem ser inalados
durante essa prática. O indivíduo ao remover o solo para encontrar o animal,
dispersa partículas de poeira juntamente com o fungo, e fica exposto à inalação
dessas partículas, levando a contaminação”, destaca.
No Brasil, em mais de 90% dos casos, a doença tem
sido diagnosticada em indivíduos que realizaram caçadas a tatus (Dasypus sp)
com exposição à poeira do habitat desses animais (tocas). Cães
participantes das caçadas também adoecem com frequência. O pulmão é a porta de
entrada do fungo e nos casos com sintomatologia mais expressiva, febre, tosse
mais habitualmente seca e dor torácica são as manifestações mais comuns.
Hipersensibilidade como artralgias e lesões cutâneas do tipo eritema nodoso ou
multiformes também são frequentes. O fungo pode disseminar para praticamente
qualquer órgão, especialmente pele, ossos, articulações e meninges.
“Já a paracoccidioidomicose, causada pelo Paracoccidioides
spp., também acomete pessoas que manuseiam o solo, porém este fungo tem
sido mais frequentemente observado nas regiões Sul e Sudeste, e em cidades do
Norte. No Nordeste poucos casos têm sido observados, principalmente em regiões
serranas”, ressalta a Dra. Damasceno. Ainda segundo ela, também nesta micose, o
tatu abriga o fungo (reservatório), mas não transmite o fungo, através da
ingestão da carne para o ser humano. “Este fungo quando inalado pode causar
doença pulmonar principalmente em adultos. Agricultores e plantadores de café
ou cana-de açúcar são os indivíduos mais susceptíveis a adoecer por
Paracoccidioidomicose”, acrescenta a Dra. Damasceno.
O diagnóstico destas duas micoses é realizado
através da identificação e isolamento do fungo em secreções respiratórias, ou
através de sorologia, exame que detecta anticorpos no sangue dos indivíduos
que tiveram contato com o fungo. A Dra. Damasceno é categórica ao afirmar que
até o momento, não há nenhum estudo que comprove que a ingestão da carne de
tatu leva ao adoecimento de indivíduos por doenças causadas por fungos. “Não há
transmissão de micoses pulmonares de animais para o homem”, enfatiza.
Risco no consumo e na manipulação da carne
No Brasil, alguns cardápios regionais incluem
carnes que vão além das tradicionais vaca, frango e porco. Em muitas regiões,
principalmente rurais e no interior, é comum o consumo de carne de animais
selvagens, sendo o tatu uma das espécies mais procuradas. Estudos apontam que
grande parte das doenças infecciosas emergentes é representada por patógenos
causadores de zoonoses e, destes, 71,8% têm origem em animais silvestres. O
perigo para a população é que o tatu é um reservatório para vários
microrganismos, como bactérias, fungos e protozoários.
Em 2018, um estudo publicado na revista PLOS
Neglected Tropical Diseases intitulado “Evidence of zoonotic leprosy in Pará,
Brazilian Amazon, and risks associated with human contact or consumption of
armadillos” alertava
que mais da metade dos tatus selvagens que habitam a Amazônia brasileira
testados eram portadores da bactéria que causa a hanseníase, Mycobacterium
leprae. De acordo com os cientistas John Spencer, Colorado State University
(EUA), e Moises Silva, Universidade Federal do Pará (UFPA), com quem a assessoria
de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) conversou há
época, as pessoas no Brasil, particularmente nas áreas rurais, caçam e matam
tatus como fonte alimentar. Na pequena cidade de Belterra, no oeste do Pará, a
pesquisa com 146 moradores mostrou que cerca de 65% da população tinha algum
contato com tatus, por meio da caça, manipulação para preparo e posterior
ingestão da carne. O pesquisador revelou que inicialmente havia dúvidas se a
exposição a tatus poderia afetar as pessoas que vivem em uma área
hiperendêmica, como o estado do Pará, já que existe tanta exposição ao M.
Leprae entre humanos, e mais de 60% da população apresentava níveis
elevados de anticorpos contra o antígeno PGL-I do M. Leprae. “Mas
quando vimos um título de anticorpos muito maior no grupo que comia tatus, a
maioria, e que houve quase duas vezes mais risco de ter a doença devido a esse
comportamento, isso foi uma forte evidência de que a hanseníase pode ser uma
doença zoonótica espalhada por tatus para os seres humanos, assim como no sul
dos Estados Unidos”, acrescentou. Relembre a entrevista realizada em 2018.
De acordo com a Dra. Damasceno, este foi o único
estudo que constatou a bactéria que causa hanseníase presente em vísceras como
o fígado e baço, dentre os animais capturados em nessa região do Pará.
“Posteriormente, os pesquisadores avaliaram alguns moradores da mesma região e
constataram uma frequência alta de pessoas que tinham anticorpos no sangue para
a mesma bactéria, sugerindo uma possível transmissão zoonótica, principalmente
durante a caça, o manuseio e preparo (limpeza da carne) do animal para o
consumo”, destaca. Os autores também destacaram que a transmissão da bactéria
pela ingestão da carne quando cozida é improvável, uma vez que o cozimento
seria um fator que levaria a morte da bactéria”, assinala. Entretanto, a
professora atenta que naquela região há consumo de ceviche, um
prato feito com a carne crua de tatu (com vísceras como o fígado que têm alta
carga de bactérias da hanseníase), o que poderia estar relacionado ao maior
número de pessoas com anticorpos para a bactéria.
A infecção pelo Trypanosoma cruzi
é outro problema para quem consome ou manipula carne de animais silvestres. O
Dr. André Roque, do Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do Instituto
Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), esclarece que o T. cruzi é um
parasito multi-hospedeiro capaz de infectar centenas de espécies de mamíferos,
incluindo o homem. “A doença nesses animais é chamada de Tripanossomíase
Americana, enquanto no homem é conhecida por doença de Chagas. Uma vez estando
no hospedeiro, o T. cruzi se apresenta de duas formas:
amastigota, forma intracelular presente nos tecidos e que pode estar em
qualquer célula nucleada, por exemplo, na musculatura; e a tripomastigota
sanguícola. A primeira forma, não apresenta um cisto ou qualquer outra forma de
resistência, ou seja, através de qualquer processo de cozimento, por mais
simples que seja, é possível a sua eliminação”, detalha o professor.
Mas o grande perigo, de acordo com o pesquisador,
se dá na manipulação do animal devido à tripomastigota sanguícola, quando a
pessoa está com sangue fresco nas mãos e há o contato com mucosas oral, nasal
ou ocular, ou ainda com algum ferimento que possa ter nas mãos. “Além disso, a
falta de cuidados com os utensílios também é um problema, já que a pessoa pode
utilizar a mesma faca que cortou a caça em um legume ou outro alimento que vai
ser consumido cru”, alerta o professor. Há risco ainda quando a higienização
não é realizada de forma adequada, por exemplo, ao se colocar alimentos que
podem ser ingeridos crus no local onde a carne foi cortada. “É assim que se
transporta a forma infectante tripomastigota sanguícola. Esse é um importante
ponto para transmissão, onde está o risco de contaminação”, frisa o Dr. Roque.
Considerando que o consumo de carne de caça é um
hábito comum das populações rurais do Brasil, a transmissão do parasito por
essa via é uma possibilidade que precisa ser considerada. A quem consome carne
de caça, fica o alerta para que sigam medidas de higiene e cuidado durante a
manipulação da carne. O Dr. Roque recorda ainda que os tatus também são
hospedeiros de espécies de Leishmania, causadores das Leishmanioses. A
transmissão ocorre quando o flebotomíneo (mosquito palha) se alimenta de um
animal infectado e posteriormente, pica o homem em uma nova alimentação
sanguínea.
Por fim, a Dra. Damasceno lembra que a caça de
animal silvestre é crime ambiental, e o consumo da carne destes animais não é
apropriada, pois devido à variedade de microrganismos que o tatu abriga,
infecções de transmissão oral podem ocorrer, principalmente as gastroenterites
agudas causadas por bactérias.
Fonte:
https://www.sbmt.org.br/portal/perigoso-ato-de-cacar-e-consumir-carne-de-tatu/?locale=pt-BR&utm_source=Mailee&utm_medium=email&utm_campaign=Newsletter+129+-+Envenenamento+por+picada+de+cobra%3A+mais+mortal+das+DTN&utm_term=&utm_content=Newsletter+129+-+Envenenamento+por+picada+de+cobra%3A+mais+mortal+das+DTN