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terça-feira, 23 de abril de 2024

Pacientes da América Latina com sarcomas podem participar de menos de 2% dos estudos clínicos sobre a doença

  

Limitação dificulta o desenvolvimento de abordagens personalizadas para o tratamento desses pacientes e o acesso deles a medicamentos mais promissores 

Pesquisadores recomendam a criação de uma rede de centros de referência, além da revisão dos caminhos clínicos, coleta de dados epidemiológicos e aumento dos ensaios clínicos nos países da região

 

Pacientes da América Latina diagnosticados com sarcomas (tipo de câncer classificado entre os chamados tumores raros) enfrentam obstáculos críticos, como diagnóstico tardio e acesso inadequado a cuidados especializados. A conclusão é de um estudo recente publicado por pesquisadores da equipe de Sarcoma do Grupo Cooperativo Latino-Americano de Oncologia (Lacog). Isso acontece, entre outras causas, em virtude do baixíssimo número de estudos clínicos disponibilizados para essa população e da precária base de dados da doença na região¹.

A pesquisa foi realizada a partir de uma revisão de artigos indexados pelo PubMed (plataforma de suporte à pesquisa e recuperação de literatura biomédica), em publicações das última três décadas. Além disso, também foram analisados sites de consórcios de pesquisa reconhecidos, grupos nacionais, redes de centros especializados e redes dedicadas aos cânceres raros, incluindo associações de pacientes.

Nela, uma busca entre estudos intervencionistas demonstrou que, de um total de 1.941 ensaios em sarcomas, somente 29 estavam disponíveis nos países da América do Sul e 6 no México. Considerando apenas ensaios em andamento atualmente, 8 de 632 eram disponibilizados na América do Sul e 4 no México. Em ambos os casos, os números representam menos de 2% dessas pesquisas.

Os pesquisadores identificaram também que registros de alta qualidade de câncer contemplam apenas 7% da população geral na América Latina, enquanto a cobertura atinge 83% na América do Norte e 60% na Europa. Esta limitação regional obstrui a avaliação precisa da incidência e taxas de mortalidade do câncer, dificultando a ampliação do número de estudos clínicos na área e, por consequência, o acesso e o desenvolvimento de abordagens personalizadas para o tratamento desses pacientes.

Para se ter uma ideia, a incidência de sarcoma é muito baixa e não é registrada pelo Globocan (Global Cancer Observatory) e o Cancer Incidence in Five Continents (CI5), que se baseia em registros de câncer de base populacional, também não contabiliza especificamente casos da doença, embora forneça dados sobre tumores “ósseos” e de “tecidos conjuntivos e moles” (regiões nas quais os sarcomas podem se desenvolver).

“A disponibilidade limitada desses registros de pacientes e dados epidemiológicos complica ainda mais o desenvolvimento de ensaios clínicos para sarcomas na região da América Latina”, diz Roberto Pestana, oncologista clínico do Einstein, membro do Lacog e primeiro autor do estudo. Segundo ele, dados precisos e acessíveis são essenciais para identificar populações e conceber protocolos de ensaio apropriados, o que ajudará a alocar recursos e fomentar o desenvolvimento de novas terapias para os sarcomas, melhorando o acesso dos pacientes a medicamentos/tecnologias potencialmente salvadores de vidas.

A análise avaliou que o tempo para estabelecer um ensaio oncológico global de fase III é consideravelmente mais longo para aprovação de pesquisas na América do Sul (mediana: 236 dias) em comparação com a Europa (52 dias) e a América do Norte (26 dias), o que pode ser um impeditivo para a colaboração de centros da América Latina em estudos multicêntricos.

“Esse cenário é particularmente problemático em cânceres raros, já que limita a capacidade de prever a inscrição e de realizar ensaios clínicos prospectivos, uma vez que são frequentemente necessárias colaborações entre vários países para atingir o tamanho de amostra necessário”, afirma.

 

Diagnóstico e tratamento

O câncer é um importante problema de saúde pública na América Latina, com uma estimativa de 1,5 milhões de novos casos e 710.000 mortes anualmente². São classificados como raros aqueles com uma incidência inferior a 6 por 100 mil pessoas por ano. Apesar de classificados como raros, o número não é irrelevante. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, 1 em cada 4 novos casos de câncer são atribuídos a tumores raros ³ 4.

Entre os cânceres raros estão os sarcomas, um grupo de doenças malignas que surgem nos tecidos conjuntivos do corpo – como músculos, gordura, nervos, vasos sanguíneos e ossos – representando uma gama diversificada de tumores que requerem atenção especializada.

A baixa quantidade de estudos clínicos e de dados da América Latina sobre a doença também tornam o diagnóstico e o tratamento mais difíceis. Os fatores que contribuem para imprecisões diagnósticas incluem falta de experiência e subjetividade do especialista, variabilidade nos resultados da análise de um mesmo profissional em momentos diferentes, as opiniões divergentes entre profissionais e amostras tumorais inadequadas. Diante desse cenário, segundo o cirurgião ortopédico do Einstein, Reynaldo Garcia, autor sênior do estudo, é importante expandir metodologias para melhorar a precisão diagnóstica e do tratamento.

Para ele, a criação de uma rede especializada em sarcoma poderia garantir um diagnóstico mais rápido e assertivo, independentemente de onde esse paciente resida, minimizando os ônus financeiro, psicológico e social relacionados aos cuidados com a saúde.

“Na França, por exemplo, a gestão do sarcoma é orquestrada por um sistema de rede bem estabelecido, garantindo que todos os pacientes recebam o mais alto padrão de cuidados. Para aqueles que não são tratados em centros de referência, os seus casos são meticulosamente revistos em conselhos multidisciplinares. Aqui na América Latina, a falta de caminhos clínicos específicos para esses tumores deixa os médicos sem uma abordagem clara para tratar essas pessoas, especialmente em áreas geograficamente distantes”, diz Garcia.

O estabelecimento de uma rede de centros de referência, inclusive, é uma das recomendações do Lacog para garantir o progresso no cuidado de sarcomas e outros tumores raros na América Latina. Uma estrutura apropriada para estas redes é o modelo "hub-and-spoke" - altamente eficiente em situações nas quais existe um número baixo ou moderado de casos que requerem conhecimento especializado e soluções inovadoras. Nesse formato, as instalações colaboradoras (“raios”) ficam situadas o mais próximo possível da residência do paciente, e, embora ofereçam uma gama limitada de serviços, podem aproveitar a experiência de centros especializados (“hubs”). Por outro lado, os hubs devem concentrar-se em oferecer conhecimentos de primeira linha, avaliações clínicas, patológicas e biológicas precisas da doença e decisões clínicas bem-informadas, tomadas por uma equipe multidisciplinar.

Além disso, estratégias como promoção de campanhas de conscientização dos pacientes, a criação de conselhos de tumores moleculares (tumor boards); participação em discussões sobre aprovações de medicamentos e políticas para doenças raras; revisão dos caminhos clínicos; coleta de dados epidemiológicos e aumento dos ensaios clínicos fazem parte da lista definida pelos especialistas.

No Einstein, por exemplo, já ocorrem tumor boards semanais para discutir os casos mais desafiadores atendidos não somente no Morumbi, mas também em Goiânia e no Hospital Municipal Vila Santa Catarina – unidade pública que conta com a gestão da organização. Neles, além de oncologistas, participam patologistas, radiologistas e radiologistas intervencionistas, radio-oncologistas, ortopedistas, cirurgiões oncológicos e profissionais da medicina nuclear. “Ainda que restritas ao nosso universo, é muito claro o quanto essas discussões agregam para a conduta a ser adotada no cuidado a cada um desses pacientes”, conclui Pestana.

O hospital também dispõe, atualmente, além de patologia especializada em sarcomas, um painel de sequenciamento para tumores sólidos que avalia alterações em mais de 500 genes, incluindo alguns relevantes para sarcomas, e outro para detecção de fusões gênicas específicas para sarcomas, incluindo alterações raras, para um diagnóstico abrangente.

 

¹ Pestana, Roberto et al. Challenges and opportunities for sarcoma care and research in Latin America: a position paper from the LACOG sarcoma group, The Lancet Regional Health - Americas, Volume 30, 2024, 100671, ISSN 2667-193X, Link.

² H. Sung, J. Ferlay, RL Siegel, et al. Estatísticas globais sobre câncer 2020: estimativas GLOBOCAN de incidência e mortalidade mundial para 36 tipos de câncer em 185 países. doi: 10.3322/caac.21660.

³ G. Gatta, J.M. van der Zwan, PG Casali, et al. Os cânceres raros não são tão raros: o fardo do câncer raro na Europa. Eur J Câncer, 47 (2011), pp, Link.

4 C.E. DeSantis, J.L. Kramer, A. Jemal. O fardo dos cânceres raros nos Estados Unidos. CA Câncer J Clin, 67 (2017), pp, doi: 10.3322/caac.21400.

 

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