José Datrino era assolado desde a infância por premonições de sua missão na Terra. Tinha alguns clarões de que teria família e bens, mas um dia largaria tudo para realizar essa missão. Foi levado a curandeiros que não conseguiriam tirar aquelas ideias da cabeça do menino.
Na metade de
Dezembro de 1961, na cidade de Niterói – RJ, três mil pessoas se apertavam
dentro de um famoso circo, o Gran Circus Norte-Americano que, apesar do nome,
era bem brasileiro. Reza a lenda que, um homem com problemas mentais resolveu
se vingar de um funcionário do circo, e ateou fogo à lona para criar um
tumulto. A trapezista, com a visão de cima que seu número permitia, percebeu o
início do incêndio, esperou que seu marido, também trapezista e no meio de seu
ato, terminasse o seu movimento e gritou: “Fogo!”. O que se seguiu foi um
Titanic de fogo, com pessoas sendo pisoteadas e o incêndio se alastrando sobre
a lona no circo, coberta de parafina para ficar brilhosa, o que serviu como
gasolina para aquele fogaréu. Mais de quinhentas pessoas morreram, pisoteadas e
queimadas, naquela pira gigante. Em sua desolada maioria, crianças. O mundo
ficou chocado com a tragédia, e até o Papa enviou donativo para ajudar os
milhares de feridos e as famílias enlutadas.
José Datrino ouvia
as notícias escabrosas que chegavam sobre a tragédia do Gran Circus. Relatou,
muitas vezes, que “uma voz astral” avisou que ele deveria abandonar o mundo da
matéria e viver, apenas, no campo do Espírito. Pegou um dos dois caminhões de
sua empresa e foi para Niterói consolar as pessoas, com palavras de bondade e
gentileza. Nascia José Agradecido, ou, o nome mais famoso, Profeta Gentileza,
que passou os anos seguintes de sua vida como andarilho e pregador da Gentileza
e da capacidade de troca humana, não pautada por dinheiro ou interesses
mesquinhos. Das cinzas do Gran Circus surgia um consolador e pregador com
barbas e ares de profeta bíblico. Quando era chamado de maluco, ou louco,
respondia: ”Sou maluco para te amar e louco para te salvar”. Eu pergunto: quem
é o louco afinal? O Profeta Gentileza, ou nossa Sociedade?
Fritz Perls,
terapeuta alemão e criador da Gestalt Terapia, também tinha barbas brancas
longas e ares de profeta, como Gentileza. A Gestalt fazia sessões que buscavam
integrar os vários atores de nossa Psique cindida. O processo ajudava a ampliar
um conceito fundamental da Gestalt e que foi o título provisório desse artigo:
“Fronteira de Ego”. A Fronteira de Ego é o ponto que delimita o Eu em relação
ao Outro. O Nós, com relação à Eles. Quando escrevo isso, lembro de uma
paciente antiga, italiana, que brigava com sua nora e esperava que seu filho
ficasse do seu lado. Dizia que a sua nora não era confiável. Confiança, segundo
ela, só em parentesco de sangue. Batia no seu braço, onde tiramos o sangue nos
exames, para enfatizar: “Sangue, dottore, sangue!”.
Esse é um bom
exemplo de Fronteira de Ego estreita. Só vivo, confio e me relaciono com quem
está do muro para cá, e o muro se delimita com os laços de sangue. Quanto mais
estreita a fronteira do Ego, mais mesquinha e neurótica é a pessoa. Fritz e
Gentileza dedicaram sua vida a expandir as fronteiras relacionais e a
capacidade de inclusão do Outro dentro de nossos muros de Berlim pessoais que
nos apequenam e amedrontam. Somos todos parte da mesma aldeia, que é o mundo.
Vivemos no momento
de nossa história em que esse texto será publicado, se aprovado, em grandes
veículos de Imprensa, quase em Tempo Real. As fronteiras para a informação e
interação vem se apagando nesse novo século. Estamos todos no mesmo barco
digital. Isso gera uma reação em contrário com igual ou maior intensidade,
tentando preservar privilégios e intensificar as fronteiras da separação. Isso
se manifesta no “Nós contra Eles”- A instrumentalização do ódio e da divisão,
os gritos do polarizações e tambores de guerra, reais e virtuais. A
instrumentalização do insulto e da ameaça, que é só abrir alguma página do X,
antigo Tweeter, para observar. O diálogo foi substituído pelo quem grita mais
alto ou quem faz a melhor Lacração, calando a boca ou cancelando quem discorda
de “Nós”.
Vejo os drones do
Irã atacando Israel e o ditador da Coréia do Norte bradando que “está na hora
de se preparar para a Guerra” para imaginar que os limites das fronteiras de
Ego vão apartando pessoas e Estados, na exata medida da promoção da Ira e da
anulação de qualquer possibilidade de integração com esse Outro, que passa a
ser meu Inimigo.
A imagem de
Gentileza oferendo flores nos semáforos, ou de Fritz, integrando os pacientes
com suas feridas e reconciliando as pessoas com quem um dia lhes provocou o
mal, parecem de dois malucos, com suas vozes sufocadas pelos mísseis e pelos
drones da grande Discórdia.
Quem está maluco, afinal?
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