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segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O apartheid nosso de cada dia


"O que acha de um negro ser obrigado a entrar pela porta da cozinha de um restaurante, em função de sua raça?"


Foi com essa impactante pergunta que o advogado Caio Leonardo Bessa Rodrigues, cadeirante, me fez refletir sobre o quão inaceitável é a entrada pela porta dos fundos, pela rampa lateral, pelo lift que precisa esperar pelo operador para funcionar. Sobre o quão descabido é ocupar o lugar de má visibilidade no cinema, e tantos outros "puxadinhos" que fazem com que a pessoa com deficiência quase sempre sinta-se "um peso" nos espaços nos quais consegue entrar. O recado subliminar é mais ou menos o seguinte: "não pensamos em ter você por aqui, mas providenciamos um jeito de você estar. Contente-se."

E não se trata de um caso isolado. Em um artigo publicado no site da revista Época no início da agosto, o professor Conrado Hübner Mendes falou das dificuldades que seu irmão, Rodrigo Mendes, enfrentou para participar da Flip (Feira Literária Internacional de Paraty). Tetraplégico, Rodrigo foi impedido, no primeiro dia do evento, de entrar de carro no centro histórico da cidade. Só conseguiu o feito nos dias seguintes, com a ajuda da Guarda Municipal, e mesmo assim foi hostilizado pelos pedestres.

No texto, que pode ser lido na íntegra aqui, Conrado lembra que, dois anos antes, o jornalista Jairo Marques, cadeirante, também enfrentou problemas para participar do evento. Apesar de se mostrar solidária sempre que uma história dessas é contada, a sociedade em geral, e os poderes públicos em particular, não demonstram muita disposição em mudar. E não se trata de discutir o que pode ser feito, mas de se aplicar o conceito do Desenho Universal, discutido há décadas mas muito pouco utilizado por aqui.

Na prática, Desenho Universal abrange o processo de criar os produtos que são acessíveis para todas as pessoas, independentemente de suas características pessoais, idade ou habilidades. O conceito foi desenvolvido com o objetivo de garantir que qualquer ambiente ou produto poderá ser alcançado, manipulado e usado, independentemente do tamanho do corpo do indivíduo, sua postura ou sua mobilidade.

É sempre bom lembrar que não estamos falando de algo direcionado apenas aos que precisam, mas para TODAS as pessoas. A ideia do Desenho Universal é justamente evitar a necessidade de se criar ambientes e produtos especiais para pessoas com deficiências, assegurando que todos possam utilizar com segurança e autonomia os diversos espaços construídos e objetos. Para isso, ele deve ser:

  • Igualitário – pode ser utilizado por pessoas com diferentes capacidades;
  • Adaptável – atende pessoas com diferentes habilidades e preferências, sendo adaptável para qualquer uso;
  • Óbvio – deve ser de fácil entendimento para qualquer pessoa, independentemente de sua experiência, habilidade de linguagem ou nível de concentração;
  • Conhecido – com as informações transmitidas de acordo com as necessidades de todos (figura, letras, braile e sinalização auditiva);
  • Seguro – deve minimizar riscos e possíveis consequências de ações acidentais ou não intencionais;
  • Sem esforço – para ser utilizado eficientemente, sem esforço e com o mínimo de fadiga;
  • Abrangente – estabelece dimensões e apropriados para o acesso, o alcance, a manipulação e o uso, independentemente do tamanho do corpo (obesos, anões etc.), da postura ou mobilidade do usuário (pessoas em cadeira de rodas, com carrinhos de bebê, bengalas etc.).

Mais que um conceito, o Desenho Universal é lei federal desde dezembro de 2004, quando foi publicado o Decreto Federal 5.296, que o define como:

"concepção de espaços, artefatos e produtos que visam atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que compõem a acessibilidade. 

Quanto à implementação desta definição, o artigo 10º determina que: a concepção e a implantação dos projetos arquitetônicos e urbanísticos devem atender aos princípios do desenho universal, tendo como referências básicas as normas técnicas de acessibilidade da ABNT, a legislação específica e as regras contidas no Decreto(...)".

Este mesmo decreto, que regulamentou as leis de acessibilidade (10.098) e de atendimento prioritário (10.048), forneceu elementos técnicos e estipulou prazos para que vias públicas, estacionamentos, edifícios públicos e privados viessem atender o Desenho Universal. O decreto prevê que as legislações estaduais e municipais, tais como planos diretores de obras e códigos de obras e posturas estaduais e municipais devem ser adaptados para atender às especificações.

Até aqui, elas são obrigatórias, pelo menos no estado e na cidade de São Paulo, apenas para habitações de interesse social. Por que esta regra ainda não é mais abrangente? A pergunta é simples, mas causa profunda reflexão na medida em que escancara um velado "apartheid" cotidiano, agora contra as pessoas com deficiência. Se, por um lado, este triste e recente episódio da história da humanidade nos causa repúdio e temos a sensação de que jamais o aceitaríamos de novo, por outro, em relação às pessoas com deficiência, nos causa passividade e, o que é pior, por vezes até gratidão: "puxa, que bom, tem um jeito do cadeirante entrar aqui".

Assim, não há como não enxergar o conceito do Desenho Universal como única alternativa viável para a arquitetura do Universo. Que entrem todos pela mesma porta. Que caminhem todos pela mesma calçada. Que acessem, todos juntos, os mesmos lugares. Justo para com as pessoas com deficiência? Não. Justo para com o desenvolvimento da humanidade. E que não precisemos de um novo Nelson Mandela pra compreender isto. Façamos acontecer!






Monica Lupatin Cavenaghi - administradora de empresas e empresária, diretora comercial da Cavenaghi e Vice-presidente da ABRIDEF, Associação Brasileira da Indústria, Comércio e Serviço de Tecnologia Assistiva.


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