Limitação dificulta o desenvolvimento de abordagens personalizadas para o tratamento desses pacientes e o acesso deles a medicamentos mais promissores
Pesquisadores recomendam a criação de uma rede de
centros de referência, além da revisão dos caminhos clínicos, coleta de dados
epidemiológicos e aumento dos ensaios clínicos nos países da região
Pacientes
da América Latina diagnosticados com sarcomas (tipo de câncer classificado
entre os chamados tumores raros) enfrentam obstáculos críticos, como
diagnóstico tardio e acesso inadequado a cuidados especializados. A conclusão é
de um estudo recente
publicado por pesquisadores da equipe de Sarcoma do Grupo Cooperativo
Latino-Americano de Oncologia (Lacog). Isso acontece, entre outras causas, em
virtude do baixíssimo número de estudos clínicos disponibilizados para essa
população e da precária base de dados da doença na região¹.
A
pesquisa foi realizada a partir de uma revisão de artigos indexados pelo PubMed
(plataforma de suporte à pesquisa e recuperação de literatura biomédica), em
publicações das última três décadas. Além disso, também foram analisados sites
de consórcios de pesquisa reconhecidos, grupos nacionais, redes de centros especializados
e redes dedicadas aos cânceres raros, incluindo associações de pacientes.
Nela,
uma busca entre estudos intervencionistas demonstrou que, de um total de 1.941
ensaios em sarcomas, somente 29 estavam disponíveis nos países da América do
Sul e 6 no México. Considerando apenas ensaios em andamento atualmente, 8 de
632 eram disponibilizados na América do Sul e 4 no México. Em ambos os casos,
os números representam menos de 2% dessas pesquisas.
Os
pesquisadores identificaram também que registros de alta qualidade de câncer
contemplam apenas 7% da população geral na América Latina, enquanto a cobertura
atinge 83% na América do Norte e 60% na Europa. Esta limitação regional obstrui
a avaliação precisa da incidência e taxas de mortalidade do câncer, dificultando
a ampliação do número de estudos clínicos na área e, por consequência, o acesso
e o desenvolvimento de abordagens personalizadas para o tratamento desses
pacientes.
Para
se ter uma ideia, a incidência de sarcoma é muito baixa e não é registrada pelo
Globocan (Global Cancer Observatory) e o Cancer Incidence in Five
Continents (CI5), que se baseia em registros de câncer de base
populacional, também não contabiliza especificamente casos da doença, embora
forneça dados sobre tumores “ósseos” e de “tecidos conjuntivos e moles”
(regiões nas quais os sarcomas podem se desenvolver).
“A
disponibilidade limitada desses registros de pacientes e dados epidemiológicos
complica ainda mais o desenvolvimento de ensaios clínicos para sarcomas na
região da América Latina”, diz Roberto Pestana, oncologista clínico do
Einstein, membro do Lacog e primeiro autor do estudo. Segundo ele, dados
precisos e acessíveis são essenciais para identificar populações e conceber
protocolos de ensaio apropriados, o que ajudará a alocar recursos e fomentar o
desenvolvimento de novas terapias para os sarcomas, melhorando o acesso dos
pacientes a medicamentos/tecnologias potencialmente salvadores de vidas.
A
análise avaliou que o tempo para estabelecer um ensaio oncológico global de fase
III é consideravelmente mais longo para aprovação de pesquisas na América do
Sul (mediana: 236 dias) em comparação com a Europa (52 dias) e a América do
Norte (26 dias), o que pode ser um impeditivo para a colaboração de centros da
América Latina em estudos multicêntricos.
“Esse
cenário é particularmente problemático em cânceres raros, já que limita a
capacidade de prever a inscrição e de realizar ensaios clínicos prospectivos,
uma vez que são frequentemente necessárias colaborações entre vários países para
atingir o tamanho de amostra necessário”, afirma.
Diagnóstico e
tratamento
O
câncer é um importante problema de saúde pública na América Latina, com uma
estimativa de 1,5 milhões de novos casos e 710.000 mortes anualmente². São
classificados como raros aqueles com uma incidência inferior a 6 por 100 mil
pessoas por ano. Apesar de classificados como raros, o número não é
irrelevante. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, 1 em cada 4 novos casos
de câncer são atribuídos a tumores raros ³ 4.
Entre
os cânceres raros estão os sarcomas, um grupo de doenças malignas que surgem
nos tecidos conjuntivos do corpo – como músculos, gordura, nervos, vasos
sanguíneos e ossos – representando uma gama diversificada de tumores que
requerem atenção especializada.
A
baixa quantidade de estudos clínicos e de dados da América Latina sobre a
doença também tornam o diagnóstico e o tratamento mais difíceis. Os fatores que
contribuem para imprecisões diagnósticas incluem falta de experiência e
subjetividade do especialista, variabilidade nos resultados da análise de um
mesmo profissional em momentos diferentes, as opiniões divergentes entre
profissionais e amostras tumorais inadequadas. Diante desse cenário, segundo o
cirurgião ortopédico do Einstein, Reynaldo Garcia, autor sênior do estudo, é
importante expandir metodologias para melhorar a precisão diagnóstica e do
tratamento.
Para
ele, a criação de uma rede especializada em sarcoma poderia garantir um
diagnóstico mais rápido e assertivo, independentemente de onde esse paciente
resida, minimizando os ônus financeiro, psicológico e social relacionados aos
cuidados com a saúde.
“Na
França, por exemplo, a gestão do sarcoma é orquestrada por um sistema de rede
bem estabelecido, garantindo que todos os pacientes recebam o mais alto padrão
de cuidados. Para aqueles que não são tratados em centros de referência, os
seus casos são meticulosamente revistos em conselhos multidisciplinares. Aqui
na América Latina, a falta de caminhos clínicos específicos para esses tumores
deixa os médicos sem uma abordagem clara para tratar essas pessoas,
especialmente em áreas geograficamente distantes”, diz Garcia.
O
estabelecimento de uma rede de centros de referência, inclusive, é uma das
recomendações do Lacog para garantir o progresso no cuidado de sarcomas e
outros tumores raros na América Latina. Uma estrutura apropriada para estas
redes é o modelo "hub-and-spoke" - altamente eficiente em situações
nas quais existe um número baixo ou moderado de casos que requerem conhecimento
especializado e soluções inovadoras. Nesse formato, as instalações
colaboradoras (“raios”) ficam situadas o mais próximo possível da residência do
paciente, e, embora ofereçam uma gama limitada de serviços, podem aproveitar a
experiência de centros especializados (“hubs”). Por outro lado, os hubs devem
concentrar-se em oferecer conhecimentos de primeira linha, avaliações clínicas,
patológicas e biológicas precisas da doença e decisões clínicas bem-informadas,
tomadas por uma equipe multidisciplinar.
Além
disso, estratégias como promoção de campanhas de conscientização dos pacientes,
a criação de conselhos de tumores moleculares (tumor boards);
participação em discussões sobre aprovações de medicamentos e políticas para
doenças raras; revisão dos caminhos clínicos; coleta de dados epidemiológicos e
aumento dos ensaios clínicos fazem parte da lista definida pelos especialistas.
No
Einstein, por exemplo, já ocorrem tumor boards semanais para discutir os casos
mais desafiadores atendidos não somente no Morumbi, mas também em Goiânia e no
Hospital Municipal Vila Santa Catarina – unidade pública que conta com a gestão
da organização. Neles, além de oncologistas, participam patologistas,
radiologistas e radiologistas intervencionistas, radio-oncologistas,
ortopedistas, cirurgiões oncológicos e profissionais da medicina nuclear.
“Ainda que restritas ao nosso universo, é muito claro o quanto essas discussões
agregam para a conduta a ser adotada no cuidado a cada um desses pacientes”,
conclui Pestana.
O
hospital também dispõe, atualmente, além de patologia especializada em
sarcomas, um painel de sequenciamento para tumores sólidos que avalia
alterações em mais de 500 genes, incluindo alguns relevantes para sarcomas, e
outro para detecção de fusões gênicas específicas para sarcomas, incluindo
alterações raras, para um diagnóstico abrangente.
¹ Pestana, Roberto et al. Challenges and opportunities for sarcoma care and research in Latin America: a position paper from the LACOG sarcoma group, The Lancet Regional Health - Americas, Volume 30, 2024, 100671, ISSN 2667-193X, Link.
² H. Sung, J. Ferlay, RL Siegel, et al. Estatísticas globais sobre câncer 2020: estimativas GLOBOCAN de incidência e mortalidade mundial para 36 tipos de câncer em 185 países. doi: 10.3322/caac.21660.
³ G. Gatta, J.M. van der Zwan, PG Casali, et al. Os cânceres raros não são tão raros: o fardo do câncer raro na Europa. Eur J Câncer, 47 (2011), pp, Link.
4 C.E. DeSantis, J.L. Kramer, A. Jemal. O fardo dos cânceres raros nos Estados Unidos. CA Câncer J Clin, 67 (2017), pp, doi: 10.3322/caac.21400.
Nenhum comentário:
Postar um comentário