Para
quem divide a casa com um parceiro ou parceira, em um primeiro momento, o
confinamento pode ser visto como uma ótima oportunidade de exercício narcísico,
aquela hora na qual se interrompe as demandas do mundo e planeja um
investimento apenas em si. Daí você dá uma folheada nos Ensaios de Montaigne e
depara-se com este texto: “Devemos nos desvencilhar de todos os vínculos que
nos prendem aos outros; tratemos de conquistar de nós mesmos a força de viver
realmente sozinhos e de viver dessa maneira confortavelmente”. E então,
legitimado pelo mestre, aproveitando a circunstância tão particular e propícia,
você vaticina: vou cuidar um pouco de mim. Outra coisa possível pra fazer no
confinamento é dedicar-se ao seu par. Afinal, agora você tem todo o tempo do
mundo e não há mais a desculpa de que você está estressado pelo trabalho e pelo
trânsito e pelos compromissos sociais, ou coisa que o valha. Se estiver
apaixonado, a hora é essa.
Agora,
um pouco de reflexão – porque, afinal de contas, há tempo para isso também. A
paixão é o exato oposto do narcisismo. Quando se está apaixonado, você só vê a
pessoa amada, só quer servi-la, esquecendo de si mesmo. É o Jack em relação à
Rose, do filme Titanic. Aquela tábua, afinal de contas, dava pros dois se
acomodarem, mas, ora, assim, o amor dele não seria tão pronunciado, tão
publicizado. Não há espaço para o eu na relação apaixonada. Por isso, o
narcisismo funciona como um limite à paixão. Uma redescoberta do Eu, uma voz de
fundo lembrando que você também existe, que também merece ter seus desejos
atendidos, considerados. Funciona como um recobrar os sentidos, um despertar
desse domínio externo, dessa força avassaladora que deixa-nos passivos e
embotados.
Durante
o confinamento, essas forças opostas podem acabar se confrontando e a mola
mestra de ambas é a fantasia. No narcisismo, a fantasia do “eu" apaga o
perímetro e transforma os outros em fantasmas ameaçadores ou inimigos a serem
combatidos. Na paixão, ao contrário, o outro aparece como o pote no fim do arco
íris, sem mediações. Nada pode ou deve impedir seu acesso a esse tesouro. Mas
daí passam duas semanas, quatro semanas, e você já não se suporta mais. Todos
os seus projetos já foram procrastinados - até porque nem eram tão urgentes assim
- e seus apelos por espaço e por prioridade já afastou os outros membros da
casa que agora ignoram sua presença alegremente, respirando aliviados por não
mais lhe dar ouvidos. E seu destempero vira desespero. Você quer corrigir esse
erro, desentortar a vara que vergou toda para o seu lado. Não há peixes no lago
no qual Narciso se espelha. É tudo estéril.
Também
a paixão não sobrevive à proximidade e ao cotidiano de tantas semanas iguais.
Não há fantasia que resista ao feitiço do tempo, de dias e dias com a mesma
rotina, as repetições do café, almoço, janta, faxina, internet, Netflix, jogo
de cartas, conversas cada vez mais com conteúdo de menos. A realidade é áspera,
angulosa, esburacada. A paixão se desvanece nas sestas de três horas e nas
insônias de noites inteiras. E qual a saída para o convívio no confinamento?
Ah,
sem dúvida, o Amor.
O
Amor é mestre na arte da contabilidade afetiva, daquelas que conseguem sempre
garantir uma restituição, por menor que seja. O Amor ensina que
“Nós" não é plural de “Eu”. É outra coisa, um espaço construído a quatro
mãos com projeto cujo fim depende do que acontece no percurso, sem antecipações
de uma parte ou outra. O Amor é um sentimento que surge com uma fatura colada
nele: cobra um preço que é sempre pago com temor e com susto, pois amar é
conhecer o outro do outro. Não é ter afinidade, que é enxergar no outro aquilo
que eu gosto em mim; não é ser a outra metade da sua laranja, a tampa da sua
panela, como se amar tivesse a ver com completar-se, sem necessariamente
completar o outro. Amar é compartilhar a parte estranha do outro, aquele alguém
que existe além de mim ou para mim.
Por
isso amar é o maior desafio dos tempos de confinamento. Não é entrega, não é
cobrança. É descoberta e aprendizado. E o que essas pessoas que se amam, tão
diferentes, mas tão próximas, desejam? É a construção da intimidade, que é o
espaço no qual não há um “eu fiz pra você" ou um "você fez pra mim”,
mas que se parece com uma praça de encontros fortuitos, com árvores centenárias
e bancos de madeira gastos onde os dois entrelaçam as mãos e ficam olhando o
movimento das pessoas. Até que se levantam e um diz "já volto, tenho algo
a fazer"; e o outro responde: "está bem, vou sentar na sala e ler um
livro". E um vai fazer o que tem a fazer sem que tenha de ser questionado
e outro vai ler seu livro sabendo que não será importunado, exceto por um fato
muito importante.
A
intimidade é o grau de liberdade na qual não é preciso justificar a presença do
outro na sua vida, e vice versa. Na paixão, você quer consumir o outro. No
Amor, o desejo é de preservar o outro. Na paixão, a fantasia é o que aproxima e
o que afasta um casal. No Amor, o compartilhamento da realidade irredutível de
cada um é o desafio, o contrato assinado voluntariamente, no qual não se
subtrai quem eu sou ou quem ela é, mas assume a aventura de compor novas
experiências comuns. Como dizia o mesmo Montaigne, em outra passagem de seu
primoroso livro, referindo-se à razão da amizade profunda que nutria por seu
amigo Ettiene, sem a necessidade de adjetivos perfunctórios: "porque era
ele; porque era eu".
Daniel Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor
no Curso Positivo.
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