O médico e terapeuta João Borzino destaca as implicações biológicas e corporais de fazer uso passivo de telas deitado sob a cama por períodos prolongados
Há um fenômeno recente na cultura jovem — “bed rotting” — que merece nosso escrutínio não como mera curiosidade viral, mas como sintoma de algo mais profundo: a obrigação que a tecnologia digital impôs sobre nossas almas. Segundo o médico e terapeuta João Borzino, em português, poderíamos chamar “podridão na cama” ou “estatismo horizontal voluntário”.
Ele diz que na superfície, bed rotting refere-se ao ato de permanecer longos períodos (um dia inteiro ou parte significativa dele) deitado na cama — não dormindo, mas fazendo uso passivo de telas: maratonas de séries, vídeos no YouTube, “scroll” infinito nas redes sociais, lancheando, evitando contatos externos.
De acordo o terapeuta, João Borzino, esse comportamento é diferente (mas lembrará) de outras práticas conhecidas: clinophilia — o impulso patológico de permanecer deitado mesmo sem dormir —, frequentemente observado em depressão ou esquizofrenia.
"Também se aproxima do fenômeno estudado como bedtime procrastination (procrastinação para dormir), quando se atrasa o sono sob a justificativa de “merecer mais tempo para mim”, sobretudo impulsionado pelo uso de smartphones e redes digitais", completa.
O médico destaca que quando examinamos bed rotting através
da lente biopsicossocial, vemos camadas entrelaçadas: nossos corpos, nossas
psiques e os laços sociais que estamos rompendo. Ele elencou Implicações
biopsicossociais:
Biológicas / corporais
• Imobilidade prolongada compromete a saúde
músculo-esquelética. Crianças ou adolescentes que aderem a essa prática perdem
massa muscular, densidade óssea, mobilidade articular. Jackson Health System
• O ciclo sono-vigília tende a se desregular: se você
passa tempo na cama em horários impróprios, o cérebro pode perder a clara
distinção entre cama = dormir, e cama = estar ativo. Isso piora a qualidade do
sono, gera insônia ou fragmentação.
• Privação ou má qualidade de sono agravadas estão
associadas a risco elevado de doenças metabólicas: obesidade, diabetes tipo 2,
hipertensão, síndrome metabólica. Mesmo sem estudos específicos para bed
rotting, esse perfil aparece nas pesquisas sobre insônia crônica e
sedentarismo.
• Desequilíbrios neuroendócrinos: cortisol irregular,
resposta ao estresse prejudicada, desacoplamento circadiano.
Psíquicas / mentais
• Depressão e transtorno depressivo maior: muitos veem o
bed rotting não como escolha, mas como fuga de energia — “não tenho forças para
levantar, então fico ali”. Isso se aproxima das características clássicas da
depressão psicomotora.
• Ansiedade generalizada ou transtornos de ansiedade
social: a evitação do mundo externo pode aliviar em curto prazo, mas agrava a
fobia de interação.
• Distúrbios do uso de tecnologia digital, dependência
digital ou comportamento compulsivo de consumo de mídia: as plataformas
alimentam esse círculo de permanência e imobilidade.
• Sintomas cognitivos: lentidão mental, déficit de
atenção, diminuição da motivação, apatia.
Sociais / culturais / existenciais
• Solidão: ao permanecer fisicamente isolado, perdemos
contato, intimidade, presença real. Estudos sistemáticos mostram que isolamento
social é fator de risco para depressão, ideação suicida e pior prognóstico para
transtornos mentais. PMC+1
• Alienação digital: nos tornamos avatares em telas,
perdendo o senso de corpo, de espaço compartilhado. A tecnologia não apenas
media relações: ela substitui o encontro.
• “Desumanização” e “desambientalização”: quando passamos
mais tempo no espaço fechado da cama do que no mundo real, nos tornamos
estranhos a nós mesmos, animais enclausurados. A natureza — caminhar, sol,
terra — deixa de existir como experiência visceral.
• A cultura da produtividade tóxica é o contraponto: a
geração de hoje é educada para nunca “desligar”. Então surge o paradoxo: para
aliviar a exaustão, rende-se ao nada — mas esse nada também mata.
• A metáfora de The Matrix é espelhada: mergulhamos numa
realidade virtual — telas, algoritmos — e nos esquecemos de ser reais. Vivemos
como prisioneiros de um mundo digital que é ao mesmo tempo nossa libertação e
nossa cela.
Se Neo escapou da Matrix para sentir frio, suor, dor,
pulsação — ser carne —, nossa geração parece resignada a viver dentro da
simulação da tela, anestesiada.
Causas, tendências e projeções para o futuro
João Borzino listou por que essa geração — mais conectada, mais “livre” em teoria — desenvolve tendências como bed rotting?
• Hiperestimulação constante: redes sociais, notificações,
estímulos sensoriais contínuos — isso esgota o sistema nervoso, que em resposta
muitas vezes “se desliga” horizontalmente.
• Burnout precoce: ansiedade de performance, pressão
escolar, expectativas de autopromoção online. É mais fácil “desligar o corpo”
do que resistir.
• Fugas existenciais: num mundo cada vez mais incerto
(crise climática, desigualdade, futuro instável), o nada na cama se torna
refúgio simbólico.
• Privação de ambiente natural: adolescentes e jovens têm
menos contato com natureza, menos espaços públicos livres — já nascem com
déficit ambiental.
• Fragmentação das redes sociais reais: famílias mais
dispersas, laços comunitários enfraquecidos, menos presença local.
Se não mudarmos o curso, corremos o risco de que essa geração — e a seguinte — percam a prática de habitar o corpo e o mundo. Eles poderão viver presos em simulacros, com corpos deslocados, afetos domesticados, relações vazias.
Segundo o médico, não há (até o momento) grandes estudos clínicos com “celebridades que admitiram bed rotting” — é um fenômeno novo, muitas vezes não diagnosticado. Mas há relatos de pessoas comuns que, em redes e entrevistas, confessam:
• Jovens que acreditavam estar “só descansando” e depois
descobrem que ficaram internados pela depressão.
• Influenciadores digitais que postam vídeos “rot comigo”
mostrando um dia inteiro de cama como um ato de rebeldia contra a
produtividade.
• Em fóruns, pessoas descrevem ciclos: “hoje me deitei,
amanhã já não consigo me levantar para nada”.
Esses relatos ilustram o perigo: o comportamento pode se
tornar crônico, com real impacto funcional, sem que o sujeito perceba.
Sinais de alerta: quem está entrando na espiral
João Borzinho destaca que esses são indícios de que bed
rotting ultrapassou o status de “exaustão ocasional” e virou risco:
1. Você passa horas (mais que meio dia) na cama quando
deveria estar ativo — e sente culpa por sair.
2. A cama deixa de ser apenas para dormir: ela vira palco
de quase toda a jornada de vigília.
3. Há deterioração do sono que não reverte com hábitos:
insônia, inversão da vigília, sono diurno.
4. Você negligencia alimentação, higiene, relacionamentos
— tudo se adensa sob o edredom.
5. Sente alienação de si mesmo, apatia profunda, lentidão
mental.
6. Isolamento social intensificado: evita contato,
reuniões, encontros, até de familiares.
7. Uso excessivo de telas com componente de “busca de
fuga”: quanto mais horas de tela, mais você fica deitado.
8. Queixas somáticas sem causa orgânica evidente: dores,
fadiga, alterações gastrointestinais.
9. Ideação negativa: “para que agir?” — pensamentos
depressivos podem aparecer.
10. Já teve diagnóstico de depressão, ansiedade ou
transtornos relacionados — isso pode agravar o quadro.
Ele fez alerta à sociedade e pontuou que cada segmento deve vigiar e agir
• Pais: não subestimem o “só mais cinco minutos de cama”.
Se um filho adolescente recusa sair da cama por dias, isso não é preguiça: pode
ser um sinal de colapso. O quarto não pode virar prisão. Estabeleçam limites,
rotinas e cuidado emocional.
• Professores: alunos que deixam de comparecer, que
“somem” ou entram em modulação extrema de participação podem estar manifestando
esse comportamento. Procurem apoio de orientação.
• Profissionais de saúde (psiquiatras, psicólogos, médicos
de família): estejam atentos ao relato de “dias inteiros de cama” como sintoma
— não descartem como lúdico. Investiguem depressão, distúrbios do sono, uso
problemático de mídia digital, transtornos do humor.
• Adolescentes / jovens: reconheçam que o corpo, o mundo e
o outro importam. A cama não é sua principal morada. Se a vontade de ficar
deitado supera a de sair da cama, peça ajuda.
• Governantes / formuladores de políticas: investam em espaços públicos, programas de juventude, ambientes que reintroduzam o contato humano e o corpo (praças, esporte, cultura presencial). Atenção à saúde mental como crise sistêmica.
"Vivemos a geração que cresceu com internet, smartphones e redes sociais — onde a maior parte da vida real acontece em telas e algoritmos. Mas agora enfrentamos o momento em que o próprio corpo se recusa. Bed rotting é a expressão simbólica de uma humanidade que se enjaulou dentro do conforto digital, que esqueceu que somos animais que caminham sob o sol, tocamos, nos cruzamos, nos abraçamos.Se não desligarmos alguns sistemas — culturais, educacionais, econômicos — seremos vencidos por aquilo que criamos. E a cama virará o túmulo da nossa vitalidade", conclui.
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