Solidão
de um dos personagens do episódio "Pessoas Comuns" reflete a epidemia
de solidão vivida na atualidade
O avanço das tecnologias trouxe transformações nas
dinâmicas sociais, porém, em meio à pela conectividade digital, um fenômeno
surge: a epidemia de solidão. Com raízes na sociedade da performance e no
individualismo, esse cenário reflete uma desconexão humana que vai além da
ausência física de companhia. Mesmo cercadas de contatos virtuais, as pessoas
vivem sob a falsa ilusão de que estão conectadas, enquanto a solidão se faz
presente de maneira silenciosa.
Na nova temporada de Black Mirror, lançada na
última semana, o episódio um, intitulado, “Pessoas Comuns”, reflete sobre o que
pode ser o nosso futuro ao dependermos cada vez mais da tecnologia para
sobrevivermos. Nele, Mike (Chris O'Dowd) opta por colocar um implante no
cérebro da esposa em coma, Amanda (Rashida Jones), para trazê-la de
volta, no entanto, eles passam a depender da assinatura do plano desse implante
para a sobrevivência dela.
Inicialmente, parece que tudo deu certo, porém, as
limitações como a área de cobertura do sinal que o implante recebe - sinal que
é limitado a partir do quanto você paga -, o fato de que Amanda precisa dormir
mais para recarregar e as propagandas involuntárias que ela passa a falar nos
fazem refletir sobre a perda do tempo de qualidade do casal. O questionamento
que surge é: será que o tempo que a Amanda 'ganhou' não é uma performance
desejada por Mike por medo de perder a esposa e ficar sozinho?
"Na era do espetáculo identitário e
individualista, muitos empreendem os esforços para serem percebidos como seres
relevantes e as interações humanas podem se reduzir ao utilitarismo de meros
interesses narcísicos, onde o outro serve apenas para enaltecer o valor do
próprio eu, o que empobrece as trocas sociais", afirma Marcos Torati,
psicólogo, professor e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
Dentro disso, a epidemia de solidão se conecta com
o crescimento do individualismo na sociedade. Um relatório da Universidade de
Harvard em 2021 mostrou que um em cada três norte-americanos reportam uma
solidão frequente, sendo que 61% dos jovens adultos entrevistados, entre 18 e
25 anos, reportaram essa solidão frequente. Para Torati, a saída pode ser a
interação humana.
"As principais consequências que a solidão
pode gerar são: comportamentos compensatórios como hiperconsumo, workaholismo,
abuso de substâncias e alterações na libido (tanto a falta quanto o excesso de
masturbação), além de exacerbar a inabilidade social. No plano psicológico,
associa-se ao aumento de transtornos de ansiedade, depressão, vazio
existencial, ideação suicida e, em casos graves, manifestações psicóticas,
refletindo um enfraquecimento da ancoragem na realidade", explica ele.
É possível sair da performance
social e se sentir menos só?
A epidemia de solidão pode estar relacionada com o choque de realidade de que estamos todos sós com os celulares nas mãos, distantes do contato humano. Portanto, se o projeto inicial da internet era romper as barreiras geográficas para criar proximidade entre as pessoas, foi justamente o caráter atrativo e confortável das plataformas digitais que dissolveu os anseios pelas conexões humanas no mundo real.
"A sociedade da performance, ao impor o papel
de eterno "empresário de si mesmo" – diariamente
"instagramável" e propagador de discursos positivos e
automotivacionais – conduz ao esgotamento físico e mental. Essa dinâmica
fortalece a busca por gratificações instantâneas e energeticamente econômicas,
particularmente encontradas nas telas", ressalta o especialista.
Partindo da premissa de que a epidemia de solidão
se relaciona com uma sociedade mais individualista, avessa a riscos e ao
enfrentamento de frustrações e desconfortos, para o psicólogo, o principal
desafio desta geração reside em aprender a renunciar ao gozo do comodismo
digital para vivenciar a interação humana no mundo real. Logo, a solução
imediata é desligar o celular e viver o que a vida real oferece, nos seus
prazeres e desprazeres.
"Curiosamente, nesta era, mesmo as
responsabilidades afetivas provocam preguiça e exaustão, impulsionando a busca
por uma liberdade individual descompromissada, que paradoxalmente resulta em
lamentos pela solidão. A solidão contemporânea não se resume à ausência de
pessoas, mas também ao excesso de exigências narcísicas direcionadas ao outro e
à formação de bolhas narciso-sectárias, onde indivíduos só interagem com visões
de mundo semelhantes, intensificando o isolamento e o empobrecimento
pessoal", comenta Torati.
No que diz respeito a combater a solidão, o
psicólogo aponta que a chave está em buscar ativamente a interação social. Ou
seja, participar de atividades em grupo, como clubes ou aulas, investir em
relacionamentos existentes dedicando tempo a amigos e familiares, e ser
proativo em conhecer pessoas novas em diferentes contextos são formas de
construir conexões.
“Porém, ampliar a esfera social implica em aprender
a transcender as próprias demandas para acolher outras alteridades e
possibilidades de ser e estar no mundo e com os outros. Será que estamos
preparados para fazer concessões à sua liberdade individual em prol do outro e,
assim, cessar a queixa da solidão?", finaliza Torati.
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