sábado, 31 de agosto de 2024

Quase normal

Em geral, as obras humanas trazem a marca de uma cultura, são vinculadas a um lugar e a um tempo. Se uma cultura se expressa em arte, a arte dessa cultura fala dela e é por ela compreendida. Algumas produções humanas, entretanto, estão à parte de condicionante local ou temporal; são universais e eternas. A melhor arte está além da História.

Talvez por serem causadas pelos labirintos do cérebro, lá onde o humano tem escondido o que não quer ou não pode ver, algumas produções venham sem restrição, livres de compromisso com as circunstâncias. A arte em estado de pura arte, seja lá quem a crie, seja lá de onde ou de quando venha, é compreendida para sempre e em qualquer espaço.

A mais frágil imagem gravada há milênios nas paredes de uma caverna segue maravilhando. Há músicas reconhecidas como proclamações da civilização. Em 1972, o astrofísico Carl Sagan idealizou as placas Pioneer. Elas portam, além de imagens de coisas comuns da Terra, sons e músicas que nos conduzem pelo espaço sideral, ao encontro de tudo ou de nada, para eventual apresentação da humanidade.

Há canções de povos indígenas latino-americanos, hits de Chuck Berry, cantos gregorianos e composições eruditas de Beethoven, Bach e Stravinsky (https://bityli.com/7M3yo). Contando que tanja inteligências sensíveis, esperamos que os improváveis alienígenas entendam que se produzimos tais coisas e tais sons é porque somos civilizados.

A arte está acima das ideologias, e talvez seja uma elevada linguagem humana para falar, senão com extraterrestres, pelo menos com a humanidade. É isso que sinto quando vou ao teatro. Lembro-me de Quase Normal, 2013, (https://bityli.com/UTgz0), vencedora do Pulitzer de 2010. “A palavra é matéria-prima fundamental do fazer artístico, a base da representação. [Na peça] a força da palavra não é menor” (Tadeu Aguiar, diretor).

Nessa apresentação (quase toda cantada), eu gostei, em conteúdo e forma, das palavras bem colocadas, das expressões convincentes, da música contagiante, enfim, da combinação disso tudo. Quer dizer: gostei da arte, dos recursos usados, da capacidade de dizer tanto sobre o humano – qualquer humano – em duas horas.

O mote do musical é uma família que lidava com o transtorno bipolar de sua mãe (eu discordo do diagnóstico). Em torno do sofrimento dessa mulher, alguns males da vida e do conviver. Recordo certas passagens que me falaram dos desconfortos e das recorrentes buscas humanas, especialmente:

Normalidade: “Você quer uma vida normal. Você sabe o que é isso?” Sofrimento: “O problemático faz reféns; o problemático teme fazer reféns”. Convivência: “Você tem que levar a sua vida, apesar e por causa da devoção do outro”. Os anos: “Acumulam as tuas esperanças e os teus rancores”. Contraditória e insatisfeita satisfação: “Amor inclui dor”.

O marido era um obstinado por felicidade. Queria que a mulher cumprisse esse seu ideal. Desejava que ela sarasse para fazê-lo feliz. Ele amava mesmo a mulher, tanto e de tal forma que a fez objeto do seu amor, tornando-se cúmplice de todo um investimento de cura sobre sua fragilidade emocional, para que ela, então, o amasse ao modo que ele esperava.

A mulher também amava o marido, mas logo que tomou conta de si, partiu: era uma questão de compostura, a vida em comum estava deteriorada. Essa mulher, na vida doméstica, expressava insatisfação sexual com o marido, e nas suas conversas com o psiquiatra ironizava o seu gosto pela vida matrimonial, além de ter devaneios sexuais na sua frente.

O psiquiatra não percebeu as queixas sutis da personagem, mas a plateia deveria estar atenta à fala remota do autor (daí eu discordar do diagnóstico “oficial”). Ora, a vida real é muito mais do que a vida conjugal. Isso foi o bonito da peça, a sua dimensão artística para além do entretenimento: o espetáculo falava da vida autêntica; os azares do casal eram apenas o argumento, o veículo da mensagem.

Nesse tempo em que se vive a moda do ser feliz nem que seja com receita médica, uma pergunta e uma resposta da peça: “Existe diferença entre ser feliz ou se achar feliz? Nenhuma, para quem nunca pensou nisso”. Pensar pode restar desconfortável. Se quero entrar numa moldura de felicidade, não percebo que felicidade programática é moldura restritiva.

Fábio Barbirato, psiquiatra, no livreto: “Quando assisti à montagem americana, fiquei emocionado e empolgado com o poder de conscientização que a arte possibilita. As pessoas saíam do teatro mais despertas e atentas”. Advertência da arte: você, talvez, se ache feliz, mas pode descobrir que não o é, se parar para pensar. Melhor desviar-se do assunto. Ou não.

 

Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.


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