Conta de luz elevada, despesas com
especialistas qualificados e equipamentos adaptados estrangulam orçamento
doméstico
No Brasil, cerca
de 13 milhões de pessoas vivem com doenças raras. De acordo com dados do
Instituto Jô Clemente, os cuidados e tratamentos médicos associados a essas
enfermidades têm um custo quatro vezes maior para o sistema de saúde, por
conta, principalmente, do diagnóstico tardio e da evolução de comorbidades. Mas
para além dos gastos gerados aos cofres públicos, qual o impacto financeiro das
doenças raras para a sociedade brasileira? No caso da Atrofia Muscular Espinhal
(AME), famílias podem gastar entre R$ 11 mil a R$ 15 mil por mês para garantir
qualidade de vida aos afetados pela condição. A estimativa é do Universo
Coletivo AME, maior coalizão em prol da causa no Brasil.
A AME é uma
doença rara e degenerativa que compromete o funcionamento do sistema nervoso
motor e dos músculos de forma acelerada. Fátima Braga é mãe de Lucas, de 21
anos, que possui AME 1, forma mais grave da doença. Na casa em que mora, em
Fortaleza, são 12 aparelhos que precisam de energia para garantir o bem-estar
do filho. Lucas necessita de respirador, máquina de tosse, bombas de
alimentação, aspirador portátil e uma central de ar-condicionado ligada 24
horas por dia, entre outros equipamentos. Por conta disso, a conta de luz chega
a R$ 1,5 mil por mês. “Quando ele era bebê e estava no hospital, não fazia ideia
de que seria assim. Uma vez em casa, este custo passou para mim. É injusto com
quem cuida e já passa por tanta coisa. Meu gasto mensal total varia em torno de
R$ 14 a R$ 15 mil”, conta.
No país, são
aproximadamente 300 novos casos por ano da doença. Cuidar de uma criança com
AME requer uma abordagem multidisciplinar, que demanda o acompanhamento de
diversos especialistas. Também envolve suporte para os responsáveis que, muitas
vezes, desenvolvem seus próprios problemas de saúde física e mental. “Passei
muitos anos vivendo a vida do meu filho. Desenvolvi várias doenças
psicossomáticas, como obesidade, depressão e ansiedade. Adoeci junto e isso
também teve um custo”, diz Fátima, que já se submeteu a uma bariátrica e a uma
cirurgia na coluna durante este período.
Uma das cinco
mulheres à frente do Universo Coletivo AME e presidente da Associação
Brasileira de Amiotrofia Espinhal (Abrame), Fátima é administradora de empresas
e hoje se divide entre seu papel de ativista nas instituições e os cuidados com
o filho. Seu sustento vem do prolabore de uma distribuidora de alimentos da
qual é sócia, junto com seu ex-marido. Entre os muitos sacrifícios financeiros
que vieram com a AME, Fátima precisou vender seu carro para arcar com um
veículo totalmente adaptado, que inclui um elevador de R$ 50 mil - também
custeado por ela. Mesmo com homecare, ainda paga R$ 2,7 mil mensais a uma
cuidadora particular, uma vez que o plano de saúde só disponibiliza uma equipe
de enfermagem. “Meu filho é pesado e grande, uma equipe apenas não dá conta”,
explica.
Também
integrante do Universo Coletivo AME e presidente da Associação de Amigos e
Portadores de Doenças Neuromusculares (Donem), Suhellen Oliveira é mãe de duas
crianças com a doença: Lorenzo, 10 anos, e Levi, 3 anos. Assim que o primogênito
foi diagnosticado, teve que mudar de casa e de emprego para ficar mais próxima
de um centro de reabilitação. Mas com as intercorrências e desafios que
acompanham a AME, pediu demissão após dois anos. Desde então, a agente de
turismo atua de forma remota, enquanto seu marido faz trabalhos temporários
para complementar a renda. “Até hoje nossa vida financeira vive na corda bamba.
Muitas vezes as contas atrasam. Ter um filho atípico representa uma diferença
financeira muito grande em relação a um filho completamente saudável. Tudo é
mais caro, do carrinho de bebê à banheira. Estamos falando de um gasto de no
mínimo R$ 11 mil para pessoas nesta situação”, destaca Suhellen que comprou a
primeira cadeira de rodas de Lorenzo no valor de R$ 12 mil através de uma
vaquinha.
Tanto ela quanto
Fátima observam que os gastos vão aumentando conforme a idade. Enquanto Lorenzo
agora precisa de um guincho de R$ 8 mil para ser levantado da cama, Lucas
necessita de um modelo de cadeira de rodas mais adequado ao seu tamanho, que
custa quase R$ 80 mil. “Quando a criança é bebê, o custo de vida ainda é menor,
porque estamos na fase das descobertas. Minha ficha caiu quando meu filho saiu
da pediatria”, complementa Fátima.
Desafio
de qualidade na saúde suplementar
Embora tenham
plano de saúde, ambas reconhecem que o desconhecimento da maioria dos
profissionais conveniados sobre a doença torna o atendimento particular uma
necessidade. “Os melhores médicos, infelizmente, não estão no convênio. E as
consultas particulares podem chegar a R$ 3 mil reais”, revela Fátima.
Lucas faz uso de
Spinraza, um dos medicamentos hoje disponíveis no SUS para tratamento da AME.
Como o remédio é administrado por injeção intratecal (diretamente na medula
espinhal), para garantir segurança ao filho, Fátima paga R$ 2 mil reais a cada
quatro meses a um anestesista e ortopedista particulares. “Tive muitos
problemas com os profissionais disponibilizados pelo convênio. Prefiro não
correr mais este risco”, ressalta.
Suhellen, que
mora em Recife, passou por situação semelhante quando Lorenzo se tornou
paciente de homecare. “Quando ele ainda estava no hospital, notamos que a
equipe não tinha familiaridade com a doença. Resolvemos bancar a vinda de
profissionais do Rio de Janeiro para treiná-la. Como o plano não aceitou pagar,
tivemos que recorrer, mais uma vez, à vaquinha”, revela. Foram R$ 8 mil para
viabilizar todo o processo de vinda dos especialistas.
Atualmente, 14
profissionais cuidam de Lorenzo, incluindo fisioterapeutas, neurologistas,
fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e nutricionistas. Ela acrescenta que
grande parte das demandas do filho mais velho tiveram que ser judicializadas.
“É um desgaste muito grande. Às vezes a gente prefere tirar do próprio bolso,
mesmo tendo direito. Sou uma defensora do SUS e muitos especialistas que
atendem meus dois filhos hoje são do sistema público. Mas as filas são enormes
para conseguir serviço de reabilitação. Uma vaga pode levar de seis meses a um
ano para ficar disponível. Até lá temos que dar nosso jeito”.
O
presente e o futuro da AME
Já existem três
terapias medicamentosas incorporadas ao SUS para tratamento da AME: Spinraza, Risdiplam
e Zolgensma. Os tratamentos são promissores, caso administrados em um
recém-nascido pré-sintomático. Daí a luta das famílias e, especificamente, do
Universo Coletivo AME, para a inclusão da enfermidade no Teste do Pezinho.
“Quanto antes se inicia o tratamento menos terapias e homecare a criança
precisará”, destaca Suhellen.
O diagnóstico do
seu filho mais novo, realizado ainda na gravidez, por meio da amniocentese,
possibilitou que todos os cuidados terapêuticos fossem rapidamente iniciados.
Os efeitos positivos são evidentes no desenvolvimento de Levi, que é mais
independente e só utiliza respirador para dormir e não tem perfil de homecare.
Fátima argumenta que, à medida em que a medicina é capaz de dar maior sobrevida aos afetados pela doença, é necessário um olhar cuidadoso no longo prazo. “Lá atrás não se falava em vida longa ou em tratamento para quem tem AME. Cada ano que a criança sobrevivia era uma vitória. A política pública não avançou junto com os avanços terapêuticos relacionados à doença. Precisamos tratar o paciente no presente, mas olhar também para o futuro, visando melhores condições para ele e àqueles ao redor. A doença é muito mais do que um diagnóstico e um tratamento. É uma nova condição de vida para toda a família”.
Sobre o Universo Coletivo AME
O Universo Coletivo AME é a maior coalizão no Brasil pela causa da Atrofia Muscular Espinhal (AME), doença genética rara que, se não diagnosticada nos primeiros dias de vida, compromete o funcionamento do sistema nervoso motor e dos músculos de forma acelerada. O país tem cerca de 300 novos casos por ano da doença, que é hoje a maior causa genética de mortalidade infantil. O Coletivo foi fundado em 2019 pela união de cinco instituições que atuam há mais de 20 anos em diferentes regiões do país e são lideradas por mães que vivenciam a AME no dia a dia: Donem (Associação de Doenças Neuromusculares), Instituto Viva Íris, Iname (Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal), Instituto Fernando e Abrame (Associação Brasileira de Amiotrofia Espinhal). O grupo atua no acolhimento, educação, conscientização e, principalmente, em ações voltadas para políticas públicas. Um dos objetivos é acelerar a cobertura da AME no Teste do Pezinho, visando o diagnóstico precoce e para garantir o acesso de todos os pacientes aos medicamentos disponíveis no SUS.
Site: https://universocoletivoame.com.br/
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