Constatação foi feita por meio de experimentos feitos com hamsters e com astrócitos isolados dos roedores (proteína spike do SARS-CoV 2 em verde e, em azul, os núcleos dos astrócitos; imagem: Lilian Gomes de Oliveira e Yan de Souza Angelo/ICB-USP)
Alterações de memória recente e
confusão mental estão entre as sequelas neurológicas mais comuns da COVID-19. E
experimentos com hamsters conduzidos na Universidade de São Paulo (USP) podem
ajudar a entender como esses sintomas surgem e talvez até indicar um caminho
para combatê-los.
A pesquisa foi conduzida com os
animais vivos e também com astrócitos isolados do sistema nervoso central dos
roedores e cultivados in vitro. Os
resultados sugerem que a infecção pelo SARS-CoV-2 acelera o metabolismo dessas
células nervosas e aumenta o consumo de moléculas usadas na geração de energia,
como a glicose e o aminoácido glutamina.
O grande
problema é que a glutamina também é importante para a síntese de glutamato – o
principal neurotransmissor envolvido na comunicação entre neurônios –, que
aparentemente fica prejudicada. Nos animais, a presença do vírus e alterações
no nível de proteínas relacionadas com o metabolismo energético foram
observadas no hipocampo (região do cérebro fundamental para a consolidação da memória
e para o aprendizado) e no córtex (também importante para a memória, a cognição
e a linguagem).
“Ao que tudo indica, o SARS-CoV-2
superativa o metabolismo dos astrócitos de modo a obter mais energia para
replicar seu material genético e produzir novas partículas virais. Tanto que,
quando usamos uma droga para bloquear a glutaminólise [a produção de energia a
partir de glutamina], a replicação viral nas células em cultura foi reduzida em
cerca de um terço”, conta Jean Pierre Peron,
professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP), pesquisador da
Plataforma Científica Pasteur-USP (SPPU) e coordenador da investigação.
O projeto contou com a colaboração de
grupos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Centro de Pesquisa em Doenças
Inflamatórias (CRID)
da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Recebeu apoio da FAPESP
por meio de sete projetos (20/06145-4, 20/07251-2, 17/27131-9, 15/15626-8, 20/04579-7, 20/04746-0 e 15/25364-0).
Resultados preliminares foram divulgados no repositório bioRxiv, em artigo ainda
sem revisão por pares.
Evidências anteriores
Os
astrócitos são as células mais abundantes do sistema nervoso central e entre as
suas diversas funções está a de dar suporte ao funcionamento dos neurônios
fornecendo nutrientes como, por exemplo, glicose e glutamina. Eles também
regulam a concentração de neurotransmissores e de outras substâncias com
potencial de interferir no funcionamento neuronal, como o potássio. Além disso,
integram a barreira hematoencefálica, que protege o cérebro contra patógenos e
toxinas.
Ainda em 2020, o grupo coordenado
por Thiago Cunha na
FMRP-USP analisou o tecido cerebral de pessoas que morreram de COVID-19 e
confirmou a presença do SARS-CoV-2 no interior dos astrócitos.
Já na Unicamp, a equipe de Daniel Martins-de-Souza demonstrou
que o novo coronavírus é capaz de infectar e de se replicar em astrócitos
humanos derivados de células-tronco pluripotentes induzidas (IPS, na sigla em
inglês), método que consiste em reprogramar células adultas da pele ou de
outros tecidos de fácil acesso (leia mais em: agencia.fapesp.br/34364).
Testes in vitro feitos na época indicaram que a infecção
induzia alterações em vias bioquímicas relacionadas ao metabolismo energético.
Esse achado foi reforçado agora com os experimentos feitos na SPPU.
“Todo esse conjunto de dados sugere
que o comprometimento do sistema nervoso central em infectados pelo SARS-CoV-2
passa pelos astrócitos e o metabolismo de energia tem um papel importante nesse
processo”, diz Martins-de-Souza à Agência FAPESP.
Resultados recentes
Após
infectar astrócitos de hamsters com o SARS-CoV-2, os pesquisadores observaram
que as células passaram a produzir moléculas inflamatórias (citocinas) e
notaram uma mudança na expressão de proteínas relacionadas com o metabolismo de
carbono (glicose). Ao analisar os metabólitos presentes na cultura de células, perceberam
que algumas substâncias estavam bem reduzidas em comparação ao controle
(astrócitos não infectados).
“Vimos que
havia uma menor quantidade de glutamina e de outras moléculas envolvidas na
geração de energia e na síntese de proteínas, como aspartato, piruvato e
alfa-cetoglutarato. Esse resultado sugere que a célula está muito ativada
metabolicamente. Acreditamos que isso ocorre porque o vírus demanda mais
energia para se replicar”, explica Peron.
Em outro
experimento, as culturas de astrócitos foram colocadas em um aparelho capaz de
medir o consumo de glicose e de oxigênio – técnica conhecida como
respirometria. A análise confirmou o metabolismo mais acelerado das células
infectadas.
“Como se
trata de sistema nervoso central, nos chamou a atenção o fato de a glutamina
estar mais baixa, pois ela é matéria-prima para a síntese de glutamato e cerca
de 90% das sinapses são mediadas por esse neurotransmissor. Aparentemente,
portanto, a infecção causa um desbalanço de energia que, por sua vez, leva a um
desbalanço nos níveis de glutamato. É possível que isso altere o funcionamento
dos neurônios, mas é algo que ainda precisa ser testado”, afirma o professor do
ICB-USP.
Quando os
astrócitos infectados foram tratados com uma droga capaz de bloquear a glutaminólise,
a replicação viral foi reduzida – houve queda tanto na concentração de RNA
viral como na quantidade de partículas de SARS-CoV-2 presentes no meio de
cultivo.
Nos testes in vivo, os hamsters foram infectados por via
intranasal e a presença do vírus no sistema nervoso central foi monitorada até
14 dias depois. Foi possível observar que, assim como ocorreu in vitro, a infecção induziu a produção de citocinas
inflamatórias e também causou alterações no perfil de proteínas cerebral.
“Observamos
a presença de partículas virais no hipocampo e no córtex – duas regiões ricas
em glutamato. Vimos também alterações em várias proteínas relacionadas com o
metabolismo de carbono e de glutamina. Isso nos faz pensar que algo similar
esteja ocorrendo em humanos e talvez essa seja a origem de sintomas como perda
de memória, prejuízos cognitivos, dificuldade de concentração e confusão
mental”, opina Peron.
Martins-de-Souza
comenta que, nos testes com astrócitos humanos, a redução de glutamina já havia
sido observada. “Esses novos achados confirmam que a glutaminólise é um
processo importante para replicação viral. Estamos, portanto, falando de um
alvo no cérebro que pode ser explorado na busca de terapias”, afirma.
Para
Peron, algo mais factível de ser testado no curto prazo é o tratamento das
sequelas neurológicas da COVID-19 com fármacos capazes de modular as sinapses
mediadas por glutamato. Esse tipo de medicamento já é usado em pacientes com
Alzheimer.
O artigo SARS-CoV-2 Infection Impacts Carbon Metabolism and Depends on
Glutamine for Replication in Syrian Hamster Astrocytes pode ser
lido em: www.biorxiv.org/content/10.1101/2021.10.23.465567v1.
Karina Toledo
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/sars-cov-2-aumenta-o-gasto-energetico-de-celulas-do-cerebro-para-se-replicar/37231/
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