Em pacientes com COVID-19, a
obesidade é o fator que mais se associa ao desenvolvimento de disfunção
endotelial – condição em que os vasos sanguíneos perdem a capacidade de se
contrair e relaxar adequadamente, aumentando o risco de eventos como infarto,
trombose e acidente vascular cerebral (AVC).
A constatação foi feita por um grupo
de pesquisadores apoiado (17/25648-4 e 15/26501-1)
pela FAPESP com base em dados de 109 pacientes internados com quadros moderados
da doença. Os resultados foram divulgados na revista Obesity
“Fizemos a
caracterização geral desses pacientes e tentamos identificar quais fatores
poderiam modular ou acentuar o dano endotelial. Os resultados indicam que o
item mais preponderante foi o IMC [índice de massa corporal]. Em segundo lugar,
com bem menos relevância, encontramos o nível de creatinina no sangue, que é um
marcador relacionado à função renal”, conta Alessandro Domingues Heubel,
doutorando no Programa de Pós-Graduação em Fisioterapia da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar) e primeiro autor do artigo.
Heubel
explica que o IMC é uma das principais ferramentas usadas por profissionais de
saúde para mensurar o grau de sobrepeso e obesidade. O índice é calculado
dividindo-se o peso (em quilos) pela altura (em metros) ao quadrado. Indivíduos
com resultado igual ou superior a 30 kg/m2 são considerados obesos.
Foram
incluídos na pesquisa pacientes de ambos os sexos, com idade média de 51 anos,
internados no Hospital Estadual de Bauru e na Santa Casa de São Carlos. A
obesidade foi a comorbidade mais prevalente (62%) nessa população, seguida por
hipertensão (47%) e diabetes (17%).
Amostras
de sangue foram coletadas logo após a admissão hospitalar e a função endotelial
foi avaliada 72 horas depois, por meio de um parâmetro conhecido como dilatação
mediada pelo fluxo (FMD, na sigla em inglês). O método não invasivo consiste em
medir o diâmetro da artéria braquial (no braço), por meio de um exame de
ultrassom vascular, antes e depois de uma manobra que obstrui o fluxo sanguíneo
do antebraço durante alguns minutos.
“Imediatamente
após a desobstrução, há um aumento do fluxo de sangue na artéria e isso
constitui um estímulo mecânico para as células endoteliais [que formam o
revestimento interno dos vasos sanguíneos] produzirem óxido nítrico, uma
substância vasodilatadora. Quanto mais a artéria se dilata, melhor a função
endotelial. E vimos que os pacientes obesos, no período de infecção ativa pela
COVID-19, tinham dilatação mediada pelo fluxo muito pequena”, conta o
doutorando.
Além da
FMD e do IMC, foi mensurada a força de preensão manual (medida com um
dinamômetro e aplicada para avaliar a capacidade física) e analisados os níveis
sanguíneos de hemoglobina, leucócitos, linfócitos, plaquetas, proteína
C-reativa (marcador de inflamação), ferritina, D-dímero (marcador de trombose)
e creatinina. Considerou-se ainda, na análise, a idade, a presença de
comorbidades, a prática de atividade física, tabagismo e medicamentos usados.
No momento em que foram avaliados, nenhum participante estava internado em
Unidade de Terapia Intensiva (UTI), mas 72% faziam uso de suplementação de
oxigênio.
Para
encontrar os determinantes da disfunção endotelial na amostra avaliada, foi
feita uma análise de regressão univariada (técnica estatística que permite
considerar cada fator de risco isoladamente) e também uma análise de regressão
múltipla (que analisa os fatores em conjunto). Somente o IMC elevado e o nível
de creatinina tiveram relação direta com a redução da FMD.
Segundo a professora da UFSCar Renata Gonçalves Mendes,
orientadora de Heubel, cada unidade a mais no IMC representou uma redução de
0,19% da FMD.
“Quando
dois pacientes com COVID-19 são comparados, um com peso normal [IMC de 20
kg/m2] e o outro com obesidade [IMC de 30 kg/m2], este último tende a ter um
valor de FMD 1,9% menor. Com base em conhecimento prévio, isso sugere um risco
cardiovascular aumentado em aproximadamente 17%", afirmam os pesquisadores
no artigo
“Na prática clínica, vemos que os
obesos têm mais eventos cardiovasculares durante a internação. Nosso estudo
pode ajudar a entender um dos mecanismos pelos quais isso acontece e por que a
obesidade aumenta o risco de agravamento da COVID-19”, diz Mendes à Agência FAPESP.
Evidências anteriores
Desde o
início da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, diversos estudos aventaram a
hipótese de que o vírus poderia infectar e lesionar diretamente as células
endoteliais, o que foi comprovado em análises feitas com amostras de autópsias
feitas em pacientes que morreram de COVID-19.
Especula-se
ainda que a lesão do endotélio pelo vírus esteja associada a distúrbios de
coagulação sanguínea (formação de microtrombos) e ao desenvolvimento de
disfunção endotelial intensa e sistêmica, dois fatores que levariam ao
agravamento do quadro.
“Ainda não
sabemos ao certo em que medida a disfunção endotelial é decorrente da lesão
direta causada pelo vírus ou uma consequência da tempestade de citocinas
[liberação de moléculas inflamatórias pelo sistema imune] típica da COVID-19”,
pondera Heubel.
Estudos anteriores já haviam
demonstrado que a obesidade eleva o risco de agravamento da COVID-19
independentemente da idade, do sexo, da etnia e da existência de comorbidades
como diabetes, hipertensão, doença cardíaca ou pulmonar (leia mais em: agencia.fapesp.br/34049/).
Entre os motivos estão as alterações mecânicas no sistema respiratório causadas
pelo aumento do conteúdo abdominal, que comprime o diafragma e o pulmão. Além
disso, os obesos frequentemente apresentam disfunções no sistema imune.
Há evidências de que o SARS-CoV-2 é
capaz de infectar as células do tecido adiposo, que acabam servindo de
reservatório para o patógeno. Isso contribui para que, de modo geral, a carga
viral do obeso seja mais alta que a de indivíduos sem sobrepeso (leia mais em: agencia.fapesp.br/33612/).
“Uma
possível explicação para nossos achados é que a maior carga viral dos obesos
aumenta o risco de infecção direta das células endoteliais. Também é possível
que a inflamação, que costuma ser mais exacerbada em indivíduos acima do peso,
tenha influência no processo. Mas por limitações associadas ao desenho do
estudo não foi possível observar uma correlação direta entre os marcadores
inflamatórios e a FMD”, conta o doutorando.
Para os
pesquisadores, os profissionais de saúde devem ficar mais atentos a
complicações vasculares ao tratar de pacientes obesos com COVID-19. “Por serem
mais suscetíveis a eventos cardiovasculares, precisam ser mais assistidos. E
temos várias estratégias para evitar que as complicações se desenvolvam”, diz
Heubel.
Mendes
considera que os achados abrem caminho para a busca de novas abordagens
terapêuticas focadas no endotélio. “Seria interessante buscar um composto capaz
de barrar o processo que leva à disfunção endotelial, visto que é um fator que
eleva o risco de complicações graves.”
Emmanuel Gomes Ciolac, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Bauru e coautor
do artigo, conta que muitos participantes do estudo evoluíram para casos
críticos durante a internação e precisaram ser internados em UTI.
“Este é um
projeto grande, no qual os pacientes estão sendo avaliados em três etapas:
hospitalar, entre 30 e 45 dias após a alta e, novamente, quatro meses após a
alta hospitalar. Mais resultados devem ser divulgados em breve”, conta.
Para
Ciolac, os dados obtidos até o momento reforçam a necessidade de a sociedade
olhar para a obesidade como problema sério. “São urgentes estratégias de saúde
pública amplas e eficientes para o combate a essa doença, que está associada à
maior gravidade da COVID-19 e de inúmeras outras enfermidades.”
O artigo Determinants of endothelial dysfunction in non-critically ill
hospitalized COVID-19 patients: a cross-sectional study pode
ser lido em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/oby.23311.
Karina Toledo
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estudo-pode-ajudar-a-entender-por-que-a-obesidade-aumenta-o-risco-de-complicacoes-cardiovasculares-na-covid-19/37126/
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