segunda-feira, 1 de julho de 2019

Processo civil constitucionalizado e direito intertemporal


"Mas temos tamanha dificuldade em perceber a diferença entre a sucessão na duração verdadeira e a justaposição no tempo espacial, entre uma evolução um desenrolamento, entre a novidade um rearranjo do preexistente; enfim entre a criação a mera escolha, que importa em iluminar essa distinção pelo maior número possível de lados ao mesmo tempo. Digamos, portanto, que na  duração, considerada como uma evolução criadora há criação perpétua de possibilidades e não apenas a realidade."
                                                                               (Henry Bergson, "O pensamento e o Movente", M. Fontes, 2006, 15).



I. O processo civil constitucionalizado.

A disciplina infraconstitucional do processo civil brasileiro não significa autonomia plena na ontologia normativa.

A evolução do direito constitucional apartou-o da ideia de o texto fundamental abrigar certas regras meramente programáticas; abandonou a doutrina o conceito de cláusulas contidas ou simplesmente programáticas, reservadas à pura discricionariedade de leis infraconstitucionais, ressalvados os meros regulamentos. As omissões são saneadas pela doutrina e pela jurisprudência subordinante do Excelso Supremo Tribunal Federal, ao qual cabe dizer, em última instância, sobre o sentido hermenêutico e a eficácia dos princípios, preceitos e garantias constitucionais.

A subordinação de outrora do direito constitucional a regramentos legislativos inferiores tornava-o algo menor, criava-se o paradoxo do predomínio sociológico do direito inferior aos comandos do superior, por comissão ou omissão.

Interpretar as regras de direito ordinário  "em conformidade com a Constituição" ("interpretação conforme") instaurou a coerência vertical, sem sede de aplicação subjetiva ou declaratória do sentido abstrato pela Suprema Corte.
O pano de fundo dessa extraordinária e relevante função do Supremo Tribunal Federal assentou seu fundamento no imperativo da densidade da Constituição, não mais uma pomposa e anódina carta de princípios teoréticos, apartada da vida real das pessoas, a tecer figuras em brumas jurídicas enevoadas.

Pontua o Mestre CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, "in verbis": 

Também é dos tempos modernos a ênfase no estudo da ordem processual a partir dos princípios, garantias e disposições de diversa natureza que sobre ela projeta a Constituição. Tam método é o que se chama "direito processual constitucional" e leva em conta as recíprocas influências existentes entre a Constituição e a ordem processual. De um lado, o processo é profundamente influenciado pela Constituição e pelo generalizado reconhecimento da necessidade de tratar seus institutos e interpretar sua lei em consonância com o que ela estabelece. De outro, a própria Constituição recebe influxos do processo em seu diuturno operar, no sentido de que ele constitui instrumento eficaz para a efetivação de princípios, direitos e garantias estabelecidos nela e amiúde transgredidos, ameaçados de transgressão ou simplesmente questionados.

O direito processual constitucional exterioriza-se mediante (a) a "tutela constitucional do processo", que é o conjunto de princípios e garantias vindos da Constituição Federal (garantias de tutela jurisdicional, exigência de motivação dos atos judiciais etc. - infra, nn. 109-135; e (b) a chamada "jurisdição constitucional das liberdades") composta pelo arsenal de meios predispostos pela Constituição para maior efetividade do processo e dos direitos individuais e grupais, como o mandado de segurança individual e o coletivo, a ação civil pública, a ação direta de inconstitucionalidade. a exigência dos juizados especiais etc (infra, n. 109). (cf. "Instituições", 8a. ed., vol. I, pg. 120).

Ecoando a evolução doutrinária e jurisprudencial, nosso vigente Código de Processo Civil, em seu art. 1º,  preceitua que "O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e normas fundamentais estabelecidas na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código" (sem correspondência no código revogado).

II. Da definição dos atos processuais segundo a Constituição.
                                              
É certo que nosso direito processual determina o isolamento autossuficiente dos atos processuais, não obstante o contexto estrutural da marcha evolutiva dos mencionados atos, seguindo-se o norte de uma final e exauriente sentença de mérito. Solucionam-se todas as questões postas pelas partes, prejudiciais, preliminares e de fundo, afim de relevar-se sociologicamente o direito almejado pelos litigantes, porém preservada a normatividade autônoma de cada ato.
No ponto, é imprescindível o domínio do conceito de ato processual, oportuno em vista da mudança de nosso parâmetro processual codificado, em face do princípio "tempus regit actum" e do eventual conflito das leis no tempo.

Convicção não desafiada firma o postulado de que atos processuais aperfeiçoados e, em especial, os julgamentos - que são assim considerados quando proclamados-, são imunes a qualquer cogitação de retroatividade, enquanto os ainda incompletos induzem a uma ultratividade da lei passada.

Considerando-se que nossa doutrina processual não se debruça verticalmente sobre a organicidade dos atos processuais, relega-se o exame da matéria à dissecação dos atos ou negócios jurídicos segundo os parâmetros traçados pelo código civil e sua tradicional inteligência sobre o tema.

Na busca do esclarecimento pragmático de eventuais dúvidas de direito intertemporal, o Colendo Superior Tribunal de Justiça firmou a elucidação de que os recursos interpostos sob a égide do CPC/1973, julgados e proclamados sob seus impérios, blindam-se de qualquer impacto do CPC/2016, de vigência imediata e sem retrocessão.

Todavia e como é de trivial sabença, uma fundamentação essencial nem sempre abarca o universo multifacetário do mundo objetivo. Às regras fustigam as exceções. E, permitam-nos, nos detalhes moram os maiores segredos.

III. Da exceção abordada.

Delineado o método, lancemos a hipótese de um julgamento, iniciado e de resultado proclamado, que acolhe prejudicial de exame do mérito e profere, consequentemente, sentença terminativa, em ação rescisória de competência originária de Tribunal Regional, sujeita, portanto, a recurso especial e/ou extraordinário. Por exemplo, ao acolher prejudicial de decadência, acontecimento correntio em nossa atividade judiciária. O processo, julgado por maioria,  terminaria  por sentença terminativa, sob a regência do Código de Processo Civil de 1973.

Contudo, a instância "ad quem" acolhe recurso do vencido e afasta a prejudicial de decadência. O processo volta ao foro originário para emissão de novo acórdão, já sobre o mérito, também julgado sem unanimidade. Outrossim, sob a vigência do Código de Processo Civil de 2016, ingressado em vigência no interregno de processamento do recurso.

Sabe-se que o novo Código inovou, extinguiu o recurso de embargos infringentes e, compensatoriamente, criou a denominada "técnica de julgamento ampliado": são convocados novos julgadores para compor o "quórum", em número suficiente para, eventualmente, alterar a decisão.

"Quid juris"? Trataram-se de dois julgamentos, motivo pelo qual nenhuma questão de aplicação do direito intertemporal incomodaria nossa consciência? Ou de um único julgamento, desdobrado em duas fases? Se for esta a cogitação correta, o conflito estaria instaurado, mas, em nosso modesto pensar, induvidosamente se aplica a lei revogada, que presidiu a primeira parte.

É no ponto que nos socorre o direito constitucional, por meio de seu princípio medular da isonomia de tratamento das partes. Na decisão que acolheu a prefacial de decadência, ainda que majoritária, não se buscou, por inexistente, o procedimento desdobrado. A parte vencedora obteve o resultado sem ampliação do "quórum". Se, por ocasião do segundo ponto recursal, também por maioria, exigir-se a ampliação do colegiado, obviamente estaremos a tratar desigualmente as partes, ao arrepio do art. 5º, inciso I, da CF.

É a isonomia, que se sobrepunha à liberdade e à propriedade entre os gregos - a "isegoria". E nos força a considerar ambos as cenas de um único ato disciplinadas pela lei vigente ao tempo da interposição do recurso e da proclamação de seu primeiro resultado. Nesse quadro, o segundo pronunciamento do Tribunal não está sujeito ao alargamento do colegiado, que não foi imposto ao litígio por ocasião do acolhimento de decadência.

Se Bergson nos auxilia, tratou-se de um "rearranjo do preexistente", não de uma "nova realidade".






Amadeu Garrido de Paula - Advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.


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