Denúncias relacionadas a abuso sexual na infância e
adolescência têm sido recorrentes na mídia. Após escândalos envolvendo a Igreja
Católica e esportistas de diversas nacionalidades, esse triste e cotidiano fato
tornou-se foco de discussão. Infelizmente, apenas a discussão é nova, o fato
ocorre diariamente, nas diversas classes socioeconômicas, em contextos muitas
vezes domésticos e em números assustadores. Segundo estimativas de várias ONGs
dedicadas à infância, como a UNICEF e Save the Children, uma a cada cinco
crianças são vítimas de violência sexual, ou seja, 20% da população sofreu
algum tipo de abuso durante a infância, segundo o Conselho da Europa. Porém, o
relatório Olhos que não querem ver (Save the
Children), denuncia que somente 15% dos casos de violência sexual contra um
menor são denunciados. Tal disparidade nos deve fazer pensar no porquê tantas
crianças são abusadas e tão poucas são amparadas.
Estima-se que entre 70% e 85% dessas agressões
procedem de um parente ou de alguém próximo ao núcleo familiar. A idade média
do primeiro abuso é em torno de 9 a 10 anos. Nessa fase de vida ocorre a
organização, diferenciação, sofisticação e ampliação do aparato psíquico. Em
outras palavras: a preparação para um adulto saudável psiquicamente. Um abuso
sexual ocorrido nesse momento - e, em geral, por alguém que deveria trazer
confiança - causa um desequilíbrio no amadurecimento psicológico. Desde fatores
neuroquímicos liberados pelo estresse causado pelo abuso, muitas vezes
repetitivo, até aspectos que envolvem a construção do ego, trazendo sentimentos
de culpa, vergonha, inferioridade e desconfiança. Nessa fase da vida, a
natureza nos faz equilibrar sentimentos impulsivos com sentimentos mais
refinados e elaborados. Os laços de confiança se concretizam, assim como uma
identidade e uma personalidade íntegra. Isso aconteceria num mundo perfeito. Em
vítimas de abuso sexual - o que não envolve apenas penetração - a formação psíquica
ocorre, muitas vezes, de forma desordenada, trazendo consequências a longo
prazo.
Em geral, a criança não conta sobre o abuso, pois
sentimentos de culpa e medo, ameaças e inferioridade a assombram. Mas mudanças
de comportamento já são visíveis: alterações de sono, apetite, retraimento
social, redução do rendimento escolar, irritabilidade, agressividade, tristeza
e choro imotivado devem nos fazer prestar atenção. Tais sintomas podem ser
compartilhados com diversas causas, mas entre elas, nós, os adultos, devemos
cogitar a possibilidade de abuso sexual. Num mecanismo de defesa, achamos que
isso nunca ocorrerá tão próximo de nós, mas não é o que as notícias e as
estatísticas revelam. Formas adequadas de abordar o assunto com uma criança
devem ser rotina e parte da educação. Não se trata de uma aula de etiqueta, mas
sim da formação de uma pessoa saudável. O tabu em discutir-se sexualidade e
abuso na infância deve ser quebrado. Mas vale ressaltar que, para tudo, há
formas adequadas, bom senso e informação para uma abordagem assertiva.
Respeitar a fase da infância, seu contexto cultural, habilidades sociais e seu
nível de amadurecimento é fundamental. É preciso trazer o assunto para o
cotidiano, mas de forma qualificada. Assim, desmistificamos o medo e o sentimento
de inferioridade que o abusador causa à vítima, e trazemos mais discernimento à
criança de quem realmente está errado. Seu diálogo fica mais aberto e a
proximidade com a família se estreita, reduzindo também aspectos de
desconfiança.
Atualmente, grande parte dos casos de abuso sexual
na infância e adolescência só vêm ao conhecimento de outros (inclusive da
justiça) na fase adulta. Anos se passam até que o adulto consiga externalizar
essa violência. Até lá, a probabilidade de doenças psiquiátricas aumenta de
forma considerável. Suicídio, depressão, transtornos de personalidade,
ansiedade generalizada e transtorno bipolar são exemplos de doenças
comportamentais que têm a taxa aumentada na vigência de um abuso sexual. Os
transtornos psiquiátricos atingem cerca de 700 milhões de pessoas no mundo,
representando 13% do total de todas as doenças. Podemos pensar que esse número
ainda está subnotificado, devido ao preconceito e psicofobia ainda existentes.
Depressão já é a segunda causa mais comum de invalidez em todo o mundo e
suicídio é terceira causa de morte entre jovens, sendo que o Brasil ocupa 8ª
posição no ranking mundial de suicídio. Tal panorama nos faz ver que as
consequências a curto e longo prazos do abuso sexual está mais perto do que
imaginamos, assim como as vítimas. Basta enxergar.
Raquel
Heep - médica psiquiatra e mestranda em Ensino nas Ciências da Saúde. É
preceptora e docente da Residência Médica em Psiquiatria da Fundação Estatal de
Atenção Especializada em Saúde de Curitiba e professora de Saúde Mental do
curso de Medicina da Universidade Positivo (UP).
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