segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Tecnologia, indígenas e um paradoxo no Brasil



Temos acesso aos principais bens e serviços que a revolução tecnológica produziu no século 21. Ao alcance das mãos, o smartphone conectado à internet nos permite falar e ouvir, ver as horas e o clima, jogar on-line e ler notícias, conhecer novos contatos e marcar encontros, tirar selfies e gravar vídeos. Estamos conectados aos cenários e às tendências mundiais em tempo real. Recebemos muitas informações e um clique permite eternizar todos os momentos que desejamos.

Olhemos todas as imagens que recebemos nas últimas semanas no celular e procuremos visualizar todas elas como um filme exibido na internet. Essa infinidade de comunicações passa por furacão, Temer, política, Moro, Lava Jato, Trump, maluco, Venezuela, Joesley, delação, Beto Richa, Quadro Negro, Gilmar Mendes, vergonha, Neymar, fisco, Corinthians, corrupção, Brasileirão, Lula, processo, Uruguai, maconha, Maduro, petróleo, Janot, cerveja no bar, Putin, vermelho, Rio, vergonha, Kim Jong-un, míssil, Queer, expressão, MBL, ódio, indígena, massacre, Aécio, primo, Brasil, tarja-preta, Bolsonaro, intolerância, Geddel e malas com milhões de reais.

Aproximemos as imagens quadro a quadro e procuremos ver, escutar, aprender, sentir, sorrir e chorar. Conseguimos? Não? Avancemos mais um pouco e olhemos atentamente. E agora? Ainda não? É compreensível, pois são muitos dados e pouco tempo para processar tudo que foi recebido. Os nossos filtros não conseguem dimensionar e mensurar a importância das informações e nos tornamos apáticos diante de fatos inaceitáveis.

Exemplo disso foram as cenas relacionadas ao massacre dos indígenas, que recebeu menos destaque do que as notícias do futebol no fim de semana. Caso o leitor ainda não tenha percebido, exterminamos um povo isolado que vivia na Amazônia e que nunca havia tido contato com os brancos. Esse povo indígena foi morto para que possamos extrair ouro para os nossos anéis e madeira para as carvoarias com trabalho análogo ao escravo. Vamos reconstituir essas imagens – hoje quase tudo é possível tecnologicamente – e ver o índio, escutar o som do facão cortando suas mãos, aprender a matar, sentir desprezo, sorrir com o extermínio e chorar pelo vazio. O progresso exige, o desenvolvimento cobra, a modernidade comemora e a vida vai embora. Estamos no século 21!

As imagens sempre desfocadas sobre os indígenas precisam ser reenquadradas para que possamos perceber que cometemos um genocídio contra crianças, mulheres e homens. Cometemos um genocídio contra um povo. Cometemos um genocídio contra a humanidade. Somos um país formado por desterrados. A composição inicial do Brasil, como apontou Darcy Ribeiro, resulta do desenraizamento dos indígenas autóctones, dos negros africanos e dos colonos europeus. Todos, sob uma falsa ideia de identidade nacional, estão em permanente conflito físico e psíquico. Todos estão numa batalha permanente ao longo dos séculos, na qual nunca haverá um vencedor. Olhemos os 60 mil executados no país em 2017. Matar não foi e nunca será a solução. Observamos apenas chacinas, miséria e muros altos espalhados pelas cidades.

Tal percepção nos permitirá reconhecer que perdemos a capacidade de aprender com os conhecimentos milenares acumulados. Perdemos a capacidade de viver em comunidade. Perdemos a capacidade de sermos solidários. Perdemos a capacidade de aceitar que o povo indígena massacrado queria viver de forma isolada. E, tendo em vista a indiferença com o que ocorreu no mês de agosto na reserva de Vale do Javar, no Rio Jandiatuba, também perdemos a capacidade de permitir que um povo viva integrado à natureza e de impedir que esta fosse transformada em objeto de consumo. Ao que parece, perdemos a essência da vida.

A situação em que vivemos expõe um paradoxo no Brasil: temos dispositivos móveis de última geração captando imagens que reproduzem condutas do século 17. Precisamos produzir imagens novas para um mundo novo. A combinação será possível apenas quando reconhecermos quem somos, deixarmos de esconder a violência diária, agirmos para acolher e nos colocarmos no lugar do outro.

A sétima economia do mundo tem recursos suficientes para deixar a 79.ª posição no ranking do desenvolvimento humano das Nações Unidas. Isso será possível? A humanidade já mostrou que o impossível é só aquilo que não podemos imaginar.




Eduardo Faria Silva - doutor em Direito, é coordenador da pós-graduação de Direito Constitucional e Democracia da Universidade Positivo (UP).







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