Talvez você já
tenha ouvido a expressão “o esporte forma caráter”. Porém, já parou para se
perguntar de onde ela vem? Por que alguém ligaria o esporte ao caráter, a
moral, a uma postura ética, em primeira instância? Para chegar a esse
entendimento, o ideal é começar definindo as razões para a ética e para o
esporte. A ética tem como sentido a condução da vida e tem seu propósito maior
na conquista da felicidade. Já o esporte tem seu sentido na saúde e bem estar,
e para o seu propósito a formação do sujeito ético.
O esportista
busca a felicidade através da vitória, acima de tudo - o que já é o fim ético
por si só. Porém, ele ainda é uma pessoa que tem seu meio de vida dentro de
regras de conduta, trabalho em equipe, respeito aos adversários e torcida, ou
seja, um comportamento que o leva à vitória de forma justa e coerente com as
regras que escolheu seguir. Essas são as características de um sujeito ético,
em quem o esporte acaba por potencializar a busca pela felicidade intrínseca ao
indivíduo.
Olhando dessa
forma, ética e esporte são extremamente ligados. O esporte é realmente um
potente construtor do caminho ético. De acordo com os primeiros filósofos
gregos, o ser humano nasce vicioso, com uma conduta baseada no erro, e a partir
disso, os pais, mestres, professores, ou treinadores, nesse caso, têm o dever
de identificar e corrigir esses erros de conduta. Temos no esporte um meio
prático, coerente e potencializador desse aprendizado. Através da prática
esportiva, o professor incute a boa conduta no indivíduo vicioso, tornando essa
atividade extremamente importante na formação, sobretudo nos primeiros anos de
vida.
Um indivíduo
vicioso está sujeito a muito mais infelicidade em sua própria vida, o que o
leva a lidar mal com o próximo e levar muito mais infelicidade para os que
estão ao seu redor. O vício é o erro, a má conduta. Para nós, brasileiros, ou
mesmo para os sul americanos, pode-se traduzir na forma da “malandragem” ou o
tal do “Jeitinho Brasileiro”, por exemplo, que é uma má astúcia muitas vezes
celebrada nos países da américa do sul (“la mano de Diós”, ou melhor: de
Maradona), quando na verdade não passa de uma postura egoísta e sem méritos.
Isso,
portanto, não é um defeito exclusivamente brasileiro. Os gregos, inclusive, já
demonstravam isso em seus mitos, o que tem uma importante repercussão ao longo
da história, como foi observado por Joseph Campbell em sua teoria da Jornada do
Herói, um ciclo de atividades que representa ciclos comuns à vida de qualquer
pessoa, e que eram alegoricamente narrados como histórias na antiguidade.
Para Campbell,
a jornada de vida de todo ser humano repete alguns passos que são iguais, em
vários pontos, para todo mundo, e eles sempre estão ligados ao enfrentamento e
superação de um obstáculo, que quase sempre é interno e tem a ver com um vício
moral. Na vida cotidiana, o esportista pode buscar um grande contrato, jogar
uma competição mundial. Para os gregos, esse exemplo universal era bem definido
e representado na Odisseia e nos Doze Trabalhos de Hércules. Essas são
histórias famosas, nas quais os heróis, Odisseu em uma e Hércules em outra,
passam por provações até superar seus vícios e só assim se qualificarem para
alcançar a felicidade.
Dentro do
campo (ou da quadra, da piscina, tatame, e etc...), o desafio não se limita a
superar o(s) adversário(s), mas implica com igual importância a luta contra a
conduta que só pensa em si mesma, que abandona o outro e só busca o lucro
pessoal, seja ele financeiro ou desportivo: a vitória “de qualquer jeito”,
através de atalhos ou trapaças. É o que acontece quando um atleta se aproveita
de um erro de arbitragem, simula uma falta, induzindo a arbitragem em erro, ou
se beneficia de qualquer infração das regras da modalidade desportiva. A
conduta ética ideal é a da autocorreção, mesmo que haja um prejuízo desportivo
imediato na disputa. Por exemplo, um jogador pode “cavar” um pênalti
inexistente, e com essa marcação incorrera, ser beneficiado, potencialmente
ganhando vantagem decisiva em um jogo difícil; ou prezar pela conduta ética
correta e buscar a vitória sem esse artificio, assumindo o risco da derrota.
Talvez ele
perca o jogo? Sim, mas a conduta vem em primeiro lugar. A intensão é o que
conta dentro do campo. Isso tem um peso de responsabilidade e pressão dentro do
jogo, tanto de adversário quanto de companheiros, e para o esportista tomar a
atitude mais nobre é muitas vezes um dilema difícil de ser vencido. A condição
se estende para fora do campo, quando o prejuízo afeta as torcidas, que quase
sempre questionarão o jogador por ter escolhido ser ético e ter “perdido a
chance de ganhar”, mesmo que se saiba que seria uma vitória injusta.
Muitas vezes,
sobretudo em esportes populares, o inconsciente coletivo da sociedade, por
vários segmentos, demandarão do esportista a conduta menos nobre, a da trapaça.
Afirma-se que isso “faz parte do jogo”, quando na verdade a atitude diz muito
mais sobre a condição ética daquela sociedade. Evidencia-se que a cultura
abraça o erro, a corrupção, o crime, que é conivente com valores errados,
sobretudo quando os traz vantagens, mesmo que em situações mais simples.
O peso do
dilema ético é uma dificuldade do esportista, tanto quanto treinar seu corpo.
Treinar sua mente e conduta é igualmente desafiador, pois só assim ele se
desvincula de valores errados, perpetuados em uma sociedade falha, e busca
através de seu modelo, incentivar uma conduta superior no jovem: sejam aqueles
que vêm o atleta como exemplo e querem praticar a mesma modalidade desportiva,
sejam aqueles que torcem pelo êxito do atleta. O caso é que atualmente a
própria sociedade tem buscado uma proximidade maior com a conduta nobre dentro
do esporte, e cada vez mais se cobra dos esportistas que se siga esse modelo
positivo. É uma mostra da mudança social que vai de fora do esporte para ele, e
vice-versa.
A emoção e a
legitimidade do esporte, que fomenta a potência de praticar e torcer, está
ligada à imprevisibilidade do resultado desportivo, que só é total e real
quando as condutas são éticas, quando há igualdade de oportunidades agindo para
que chances sejam igualmente adequadas em ambos os lados de uma competição.
Assim, o esportista realmente melhor preparado é quem tem chances de vitória,
mesmo com o acaso agindo como intensificador da emoção de se acompanhar o
esporte. A espontaneidade não surge de um cenário onde há o vício agindo para
trapacear. A verdadeira vitória está em justamente se superar os obstáculos
competitivos dentro das regras da modalidade desportiva. O vencedor só é
realmente vencedor se ele enfrenta de igual para igual seu adversário. O lucro
maior está aí.
Uma questão
relevante que se coloca nesse prisma é: qual a cultura ética a sociedade quer
praticar, o que determina como introduzir a conduta ética aos jovens e, pois,
usar o esporte, essa potente ferramenta, para desenvolver a conduta ética das
novas gerações.
Queremos
gerações mais éticas ou a competição pelo resultado independentemente do meio
usado?
Samuel
Sabino - fundador da consultoria Éticas Consultoria,
filósofo, mestre em bioética e professor.
Roberto
Armelin -
advogado, um dos fundadores do IBDEE, ex-diretor jurídico do São Paulo FC,
presidente da Comissão de Direito Desportivo do IASP, professor de Direito
Processual Civil e Processo Desportivo da PUC/SP, mestre e doutorando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário