Talvez o
aspecto mais trágico na atual passagem brasileira consista no rompimento do
diálogo social. Colegas contra colegas, amigos contra amigos e na interioridade
mais íntima das famílias. Consequências podem ser irreversíveis, enquanto as
estrelas continuarão a iluminar as noites e a política brasileira a tomar novos
rumos, para o bem ou para o mal. Ambos os grupos do bem e do mal apostam no
bem. Poderá ser tarde para reatar vínculos e a harmonia. A dissidência
vem da parca análise de corretos conhecimentos epistemológicos, ciência que se
debruça sobre os métodos do saber, provavelmente a mais intrincada de todas,
tanto que filosofia não significa sabedoria, mas amizade à sabedoria. Somos uma
experiência "sapiens" extremamente recente se considerarmos os
milhões e bilhões de anos cósmicos, se consideramos os fenômenos do universo em
sua abrangência. Contudo, cada qual se considera dominador de todas as
percepções possíveis e concordar com o outro é uma demonstração de fragilidade,
de deficiente educação ou de pálida cultura.
O homem
somente se tornou homem graças à linguagem, ferramenta de sua capacidade de
comunicação, de intercâmbio de ideias e opiniões e de formação de consensos e
dissensos. Se a vida humana sobre a terra é considerada um milagre por muitos
sábios, porque permaneceu latente durante bilhões de anos, sem manifestação e,
repentinamente, num período determinado e curto, veio à tona, por meio da
reprodução horizontal dos menores e menos complexos seres possíveis, a
construção da sociedade, em que cada qual cumpre papel diverso em relação de
complementaridade, e tudo resulta no exercício de um conjunto de funções
díspares que permite a sobrevivência de todos, é um milagre maior ainda. O que
se pode afirmar de duas crianças nascidas simultaneamente, ambos com talentos
especiais, exemplificativamente, uma para ser um grande juiz da Suprema Corte e
outra um dos melhores cirurgiões? Sabe-se que os talentos são aperfeiçoados,
mas sua origem antecede ao nascimento. Como não é possível que juiz e cirurgião
se entendam à primeira vista sobre determinados assuntos, a linguagem criou uma
riqueza incomensurável, cuja exploração em minúcias serve para aproximar e
construir.
Todavia, a
linguagem também é fonte de paradoxos e do fenômeno que os linguistas denominam
de oximoro, locução que reúne palavras de sentido oposto, retórica antiga, como
no exemplo da expressão jurídica "silêncio eloquente". A linguagem
surgiu enquanto esforço de todos os povos que habitavam a terra para se
comunicarem, inclusive por gestos. Tem um fundo comum, uma argamassa
indiferenciada, porém, no evolver da história, ganhou espaço a "Torre de
Babel", de modo que temos, hoje, suas variadas expressões, de país para
país e de regiões para regiões, diferenciações cada vez mais cultivadas pelo
empenho de pais e mestres para transmitir seu modo de falar às novas gerações.
Dada a
juventude da humanidade, acima referida, a linguagem não atingiu um ponto de
maturidade capaz de fornecer a todos a segurança de que necessitamos para
adequar convenientemente nossa consciência aos fatos objetivos, é dizer,
aperfeiçoar nossa inteligência para que equívocos sérios não comprometam nossa
convivência. Por isso é que muitos filólogos dizem que a linguagem é, também,
um meio de ocultar e não de revelar a verdade das coisas.
Ultrapassada
essa longa, porém necessária digressão, não poderíamos deixar de nos referir a
um discurso manifestado no Senado da República pelo Senador Antonio Anastasia,
que colegas seus, que se disseram embevecidos, aplaudiram como uma aula
magistral de direito constitucional concernente ao tema do momento, o
impeachment ou impedimento. Em tom didático e sem nenhuma afetação professoral,
o parlamentar traçou um paralelo entre os crimes comuns, previstos no Código
Penal, e o "crime de responsabilidade", de que é acusada a Presidente
da República.
Permitimo-nos
apenas alguns poucos acréscimos, que não foram feitos pelo autor da peroração
em razão do tempo limitado. Crime é uma conduta expressamente prevista, com
todas as letras, no Código Penal, contrária ao direito e imputável a alguém por
culpa ou dolo, que se caracterizam pela falta ou presença de propósito lesivo.
Não há em nosso ordenamento jurídico crime além dos descritos nas leis penais.
Nossa
Constituição incorporou a linguagem de "crime de responsabilidade".
Não lhe cabia descrevê-lo, o que se fez por lei ordinária. Os desatinos do
governo Dilma se subsumem como uma luva às expressões típicas da lei.
De início,
temos a infração administrativa, a hipótese de irresponsabilidade na condução
da coisa pública. Por si só já justifica o impedimento, sem prejuízo de sanções
civis e penais. "Pedaladas fiscais", abertura de crédito sem
lei autorizativa, desvio de finalidade para nomear Ministro sem observância dos
requisitos contemplados no art. 37 da CF e, ainda, pelas mesmas e ainda mais
graves razões, barganha de ministérios com grupos totalmente incapazes de
cumprir o preceito da eficiência, formam, como disse a professora de direito da
USP Janaína Paschoal em seu brilhante pronunciamento aos parlamentares, um
conjunto de imoralidades suficiente ao afastamento de qualquer governo.
Como não
temos o salutar instituto do "recall", só resta o impedimento. A ele
está sujeito o agente público que não cumpre a Constituição ou leis
infraconstitucionais. O bem jurídico tutelado pela fiscalização política do
parlamento é a correta administração da coisa e das finanças públicas, que não
podem ser dissipadas, deliberadamente ou por meros erros de atuação
governamental. Logo, quem não respeita o sistema normativo, quem recorre a
pedaladas ou maquiagens fiscais, quem abre créditos suplementares
autoritariamente, sem autorização do Legislativo, quem incorre em desvio de finalidade,
como a nomeação de alguém Ministro não em vista do bem comum, mas para
auxiliá-lo a escapar das malhas da lei, quem comercializa Ministérios
para salvar-se está sujeito ao afastamento do governo, como forma de
preservação dos superiores interesses populares; depois se haverá com os
juízes.
Assim
compreendida, substancial e não apenas semanticamente, a expressão "crime
de responsabilidade", como pontuou, a bem da simplicidade e da pedagogia
jurídica, o Senador Anastasia na tribuna do Senado em 29/3, resta evidente que
a Presidente incorreu em infração administrativa, dissipadora de nossas
finanças, o que, por si só, justifica o impedimento previsto na Carta da
República. À luz do bom direito, cai por terra a tresloucada invencionice
de "golpe", outra manipulação da linguagem, da qual se socorre o
governo para manter-se no poder a qualquer preço.
Amadeu Garrido de Paula - um renomado jurista brasileiro com
uma visão bastante crítica sobre política, assunto internacionais, temas da
atualidade em geral. Além disso, tem um veio poético, é o autor do livro “Universo Invisível”.
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