sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Infidelidade financeira: quando o “segredo da carteira” se torna traição conjugal

Em tempos de transparência digital e autonomia econômica, a fidelidade entre parceiros também precisa incluir o dinheiro 

  

Quando se fala em infidelidade conjugal, pensa-se logo em traição amorosa — um terceiro na relação, olhares desviados, o pacto de exclusividade rompido. Mas há uma forma silenciosa e devastadora de traição que não envolve corpos nem mensagens secretas: a infidelidade financeira.

Ela ocorre quando um dos parceiros esconde dívidas, gastos, contas bancárias ou investimentos, omitindo informações que afetam o patrimônio comum. Pode parecer um deslize menor, mas é, na essência, uma violação do dever de fidelidade recíproca previsto no artigo 1.566, inciso I, do Código Civil, que consagra como deveres dos cônjuges: fidelidade, vida em comum, mútua assistência, sustento e educação dos filhos, respeito e consideração mútuos.

Se o casamento ou a união estável pressupõe comunhão de vida e cooperação, a ocultação de informações financeiras rompe o elo da confiança e fere o sentido mais profundo da palavra fidelidade.



A deslealdade que não se vê

A infidelidade financeira é o adultério invisível: não há beijos nem encontros, mas há segredos. Esconder um cartão de crédito, abrir uma conta paralela, contrair empréstimos sem avisar, gastar compulsivamente ou manter uma “reserva secreta” são formas sutis de minar a parceria.

A confiança, base da relação, se dissolve. O parceiro enganado sente-se manipulado, excluído das decisões e inseguro sobre o futuro. Muitos descrevem a descoberta como um golpe moral — tão doloroso quanto uma traição amorosa.

Do ponto de vista jurídico, o comportamento pode configurar violação de dever conjugal e, em casos extremos, ensejar responsabilidade civil por dano moral. Além disso, a ocultação de bens ou dívidas pode interferir na partilha patrimonial e na fixação de alimentos durante a dissolução da união. Mas, antes mesmo do campo jurídico, há o campo ético: a deslealdade financeira é uma forma de enganar a confiança do outro, de se apropriar de decisões que deveriam ser compartilhadas.



A fidelidade do artigo 1.566 sob uma nova luz

O dever de fidelidade recíproca, inscrito no artigo 1.566 do Código Civil, nasceu com foco na lealdade afetiva e sexual. Mas o tempo ampliou seu alcance. Hoje, a fidelidade deve ser lida como um compromisso de transparência e parceria integral, que envolve também a dimensão financeira da vida comum.


Não há vida conjugal plena sem confiança econômica. O dinheiro, afinal, representa escolhas, prioridades e valores. Quando um dos parceiros esconde o modo como administra recursos, rompe não só a comunhão de bens, mas também a comunhão de propósitos.

A fidelidade moderna, portanto, é afetiva e financeira — feita de verdades partilhadas, de diálogo e de responsabilidade conjunta.



Caminhos de reconstrução

Recuperar a confiança após a infidelidade financeira é possível, mas exige coragem e humildade. O primeiro passo é a transparência total: abrir contas, expor dívidas, mostrar extratos e contratos. O segundo é dialogar de forma estruturada, com ajuda, se necessário, de um terapeuta de casais ou consultor financeiro.

É fundamental compreender que o dinheiro carrega significados emocionais. Cada pessoa traz uma história familiar e afetiva sobre ele — crenças, medos, traumas. Quando o casal evita conversar sobre finanças, cria-se o ambiente ideal para que os segredos floresçam. E o segredo, nas relações, é o primeiro sintoma da ruptura.



Prevenção: boas práticas para evitar a infidelidade financeira

Prevenir é sempre mais eficaz do que remediar. Casais emocional e financeiramente saudáveis constroem a lealdade todos os dias, inclusive nas contas. Algumas práticas ajudam:


1. Conversas regulares sobre dinheiro — com franqueza, sem acusações.

2. Transparência ativa — não apenas quando há suspeitas, mas como rotina de confiança.

3. Planejamento conjunto — metas compartilhadas e divisão clara de responsabilidades.

4. Respeito à individualidade — pequenas despesas pessoais podem existir, desde que não virem segredo.

5. Monitoramento mútuo — acompanhar contas e investimentos sem transformar isso em vigilância.

6. Educação financeira comum — entender, juntos, como gerir o patrimônio, investir e planejar o futuro.

Essas medidas não se limitam a “organizar finanças”, mas a fortalecer o vínculo conjugal, porque o dinheiro, em um casal, é também uma linguagem de amor, de poder e de confiança.


Reflexão final

A fidelidade financeira é uma extensão natural da lealdade conjugal. Trair nas finanças é esconder o futuro, falsear a parceria, romper o pacto que sustenta o projeto de vida a dois. O amor, como a economia, precisa de clareza, previsibilidade e reciprocidade. Planilhas abertas e corações transparentes — talvez seja essa a melhor forma de cumprir o velho mandamento do artigo 1.566: fidelidade recíproca. Porque, no fim das contas, trair com o corpo fere; mas trair com o silêncio — e com o extrato — pode destruir tudo.


Marcelo Santoro Almeida - Advogado e professor de Direito de Família e Sucessões da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio



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