Em fevereiro de 1981 cheguei a Curitiba, vindo de Fortaleza. Eu tinha, então, pouco mais de 16 anos. Filho de militar, vim na bagagem da transferência de meu pai. Uma decisão sem transições. Em janeiro, ele chegou à cozinha onde tomávamos café e anunciou: mês que vem vamos para Curitiba. E toda a minha vida mudou.
Quem já foi adolescente sabe que essa é a fase da
vida que inspirou a ideia bíblica de céu, inferno e purgatório. Pois bem, eu
vivia, depois de anos de um inferno de infância e um purgatório de
pré-adolescência, o paraíso dos meus 15, 16 anos: era bom estudante, tinha
ótimos amigos, destacava-me nos esportes, participava das festinhas do bairro,
gostava de samba e forró, dançava direitinho, lia muito e já cometia alguns
poemas e crônicas na máquina Olivetti verde- água que meu pai me dera de
presente de quinze anos. E, a maior das glórias, começara a namorar, em julho
do ano passado, uma moça dois anos mais velha do que eu, provocando inveja e
admiração em todos os meus colegas. Ela era de Recife e nos conhecemos em uma
das festinhas de garagem que ocorriam todos os fins de semana na vila onde eu
morava. Depois dos primeiros enlevos e declarações, ela voltou para casa e
passamos o semestre nos correspondendo com cartas compridas e melosas, cheias
de versos rimados pobremente, mas repletos do sentimento furioso que marca a
primeira paixão. Em dezembro, ela voltou e retomamos nosso romance, desfilando
nossa alegria em todos os lugares: nas ruelas da vila, na varanda da casa da
prima onde ela ficava alojada, no clube dos sargentos, onde batíamos ponto todo
fim de tarde e nos fins de semana, no cinema, nas praças, debaixo das
mangueiras e dos cajueiros. Falávamos de futuro, e tudo parecia calmo e azul,
como aquelas tardes quentes e arejadas do verão cearense.
E então meu pai disse, simplesmente: vamos embora.
Curitiba era o avesso da minha cidade. Fria, úmida,
nevoenta, sem árvores frutíferas, exceto aquelas enormes araucárias com suas
pinhas sem graça e sem gosto. As pessoas eram taciturnas e silenciosas, e logo
estranharam meu sotaque e o movimento exagerado de minhas mãos e braços.
Rapidamente aprendi a lição e calei-me. Tornei-me também um sorumbático que mal
levantava a cabeça durante as aulas e se enfurnava nos livros para se distrair.
Não fiz amigos naquele ano, mas ganhei um apelido que detestava, principalmente
pelo tom com que era entoado: “Ceará”. Descobri, nesse processo, algo que
desconhecia completamente: o preconceito. E odiei o preconceito. Odeio até
hoje, e meu corpo ainda treme de ódio quando vejo isso acontecer com alguém,
seja por sua cor, corpo, voz ou atitudes. Nunca esqueço que zoavam do fato de
eu não ter muitas variações de roupa e repetir calças e casacos durante aqueles
dias intermináveis de escola. Até hoje visto o mesmo tipo de roupa, com
pouquíssimas variações de cores, e sei que é uma resposta traumática a esses
achaques.
Aos poucos, porém, fui sobrevivendo. Entrei na
universidade, comecei a dar aulas, arranjei uma namorada, casei, tive um filho,
separei, casei de novo, adotei mais duas filhas e hoje, 40 anos depois,
sinto-me mais curitibano do que nunca. Mas, nos meus fins de tarde, nas raras
tardes quentes e com brisa desta cidade, revisito meu tesouro escondido, ao
qual só eu tenho acesso: minha identidade cearense, com seus cheiros intensos
de fruta, as risadas francas dos meus amigos de rua, a melodia das sanfonas e
das zabumbas nas festas do clube, onde eu colava meu rosto ao rosto de minha
primeira namorada e trocávamos promessas de amor eterno.
Daniel Medeiros - doutor em Educação Histórica e
professor de Humanidades no Curso Positivo. @profdanielmedeiros
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