A endometriose é uma doença inflamatória benigna
que afeta cerca de 8 milhões de brasileiras que, infelizmente, percorrem
um longo caminho desde o início dos sintomas até o diagnóstico definitivo e
acesso ao tratamento. A doença se caracteriza pela presença de tecido menstrual
(endométrio) fora do útero, podendo atingir os órgãos reprodutivos, mas também
intestino, bexiga e até os pulmões. As manifestações clínicas incluem cólicas
menstruais, dor durante as relações sexuais e ao evacuar e urinar. Em
geral, os sintomas surgem ou pioram durante o período menstrual, mas
manifestações atípicas não são raras. A infertilidade é outro ponto doloroso da
doença que pode ser responsável por 40 a 50% dos casos de infertilidade.
Infelizmente, os tratamentos disponíveis até o
momento apenas aliviam a dor, mas não são curativos e devem ser mantidos por
longos anos. Dessa forma, a individualização é fundamental e deve levar em
consideração a idade da mulher, os sintomas envolvidos, a presença de
infertilidade e o desejo de engravidar assim como o estadiamento da
doença.
O diagnóstico e o tratamento da endometriose ainda
representam desafios aos médicos, visto que os sintomas muitas vezes são
inespecíficos e não há bons testes clínico-laboratoriais para diagnosticar a
doença, com precisão. Por isso, há um atraso importante no diagnóstico da
doença, de em média de 8,5 anos (cerca de 7 anos no Brasil) do início das
manifestações clínicas. Tal demora se explica pela apresentação clínica
heterogênea da doença, a necessidade de exames diagnósticos realizados por
médicos especializados nem sempre disponíveis principalmente na rede pública e
um fenômeno denominado “normalização da dor”.
Estudos revelam uma realidade que não é exclusiva
do Brasil: 61% das mulheres com endometriose escutaram de um médico, inclusive
de seus ginecologistas, que “não havia nada de errado” e que a dor seria
“normal” e muitas (47%) passaram por cinco ou mais médicos até obter o diagnóstico
e/ou tratamento adequados. A jornada de uma mulher com endometriose
envolve a peregrinação por consultórios e realização de inúmeros tratamentos,
inclusive cirurgias, muitas vezes sem conseguir o alívio da dor ou a tão
sonhada gravidez, apesar de receber tratamentos adequados.
Neste contexto, o desenvolvimento de novas
tecnologias com poderosos métodos de análise de dados pode representar uma
esperança para milhares de mulheres que enfrentam a endometriose em todo o
mundo. A inteligência artificial (IA) vem sendo usada nas pesquisas médicas de
várias formas, desde o desenvolvimento de novas drogas, a análise de imagens
obtidas por diversos métodos e até apoiando a descoberta de alterações
genéticas associadas a várias doenças.
Embora a IA seja capaz de identificar novos
padrões em dados e analisar grandes conjuntos de dados, sua eficácia depende da
qualidade e quantidade dos dados e da experiência daqueles que implementam os
algoritmos. As aplicações atuais da IA na endometriose incluem a análise de
imagens obtidas pela ultrassonografia à identificação da melhor abordagem
terapêutica, e na análise de resposta aos tratamentos, assim como na avaliação
de técnicas cirúrgicas como a robótica. Tais tecnologias são promissoras, pois
podem ajudar no diagnóstico da doença e reduzir o atraso diagnóstico atual,
assim como os custos do sistema de saúde ao identificar a melhor opção de
tratamento para cada mulher e até ajudar no treinamento de profissionais de
saúde e cirurgiões.
É fato que a IA tem um potencial significativo no
avanço do diagnóstico e tratamento da endometriose, mas deve ser aplicada com
cuidado e transparência para evitar equívocos e assegurar a precisão
diagnóstica e terapêutica.
Além da IA, espera-se que o trabalho conjunto de
pesquisadores, engenheiros, médicos e equipes multidisciplinares com a
aplicação de novas tecnologias sejam capazes de desvendar aspectos da etiologia
da endometriose que permitirão o desenvolvimento de marcadores para identificar
precocemente a doença assim como estabelecer terapias médicas individualizadas
capazes de tratar a dor e/ou a infertilidade e até prevenir a doença. A
junção de novas tecnologias já começa a produzir resultados alentadores.
Recentemente, foi liberado na França um teste diagnóstico para endometriose
através da saliva que utiliza tanto IA quanto modernas técnicas de
sequenciamento genético para identificar biomarcadores da doença. Embora os
resultados iniciais sejam promissores, é preciso ampliar o uso e validar o
teste em diferentes populações. A adoção de novas tecnologias poderá ainda
democratizar o acesso às complexas cirurgias, muitas vezes necessárias para
tratar a doença, assim como treinar adequadamente médicos, cirurgiões e demais
profissionais de saúde na abordagem da endometriose, ampliando o acesso às
equipes multidisciplinares ainda escassas em nosso país.
Os números da endometriose são tragicamente
impressionantes em termos dos custos tanto no sistema público como no privado
de saúde, assim como o comprometimento da qualidade de vida dessas mulheres e
suas famílias. Estamos, sem sombra de dúvidas, diante de um problema de saúde
pública e, enquanto esperamos o avanço nas pesquisas e a estruturação de
equipes capazes de diagnosticar e tratar a doença, há muito que nós médicos
podemos fazer por essas mulheres. Acreditar na dor e acolher os sintomas,
dúvidas e medos assim como individualizar o tratamento focando na melhora da
qualidade de vida da mulher são passos iniciais fundamentais. No caso da
endometriose, o princípio hipocrático “Curar quando possível; aliviar quando
necessário; consolar sempre” é inegociável.
Márcia Mendonça Carneiro - Diretora científica Clínica
ORIGEN
Professora Titular – Departamento de Ginecologia Faculdade de Medicina - UFMG
Nenhum comentário:
Postar um comentário