Cada geração ergueu novas estruturas sobre fundações sólidas, legadas pelos nossos antepassados. A era do conhecimento, que atualmente experimentamos, finca suas raízes em marcos históricos notáveis, entre os quais destacam-se dois colossos do saber: a lendária Biblioteca de Alexandria e a revolucionária imprensa de Gutenberg.
A Biblioteca de Alexandria,
precursora do conceito moderno de universidade, resplandeceu como um imponente
farol de conhecimento entre o século III a.C. e o século IV d.C. Guardava em
seus 700 mil rolos de papiro e pergaminho o cerne do saber da Antiguidade, com
a audaciosa missão de reunir um exemplar de todos os manuscritos existentes na
face da Terra. Porém, seu acervo era privilégio de um seleto e conspícuo grupo
de sábios, poetas e matemáticos. Sua destruição, carregada de simbolismo, é
considerada por muitos como a maior tragédia da história da ciência e da
cultura.
Até a metade do século XV, a transmissão escrita do saber no ocidente era em boa parte limitada aos monges copistas dispersos por algumas dezenas de mosteiros e universidades.
Foi nesse contexto que Johann Gutenberg, um engenhoso ourives alemão, mudou o curso da história ao criar a tipografia por volta de 1440, em Mainz, Alemanha (onde se pode visitar o Museu de Gutenberg com réplicas de alguns artefatos históricos - vale a pena a visita!). A prensa de tipos móveis provocou uma transformação monumental, moldando a Era da Renascença e empoderando o Iluminismo, a Reforma Protestante e a Revolução Científica, aclamada por muitos como a maior revolução tecnológica do milênio. Foi ela que democratizou o conhecimento, viabilizando a produção em escala de livros e jornais.
Na Europa renascentista, com
uma população estimada em 50 milhões de habitantes, apenas 15% eram alfabetizados,
devido à escassez de livros. Contudo, a invenção de Gutenberg alterou
profundamente esse panorama, dobrando o número de leitores europeus em poucos
anos. Por volta de 1500, já circulavam meio milhão de livros pelo continente.
E isso ocorre, paradoxalmente, na era digital, sendo que jamais o acesso ao saber e à pesquisa foi tão democrático, uma vez que, em questão de segundos, mediante um simples teclado ou comando de voz, é possível acessar conteúdos de praticamente qualquer área do conhecimento, inclusive com contextualização, aplicação e exemplos por meio das ferramentas de inteligência artificial.
Hoje, a internet e as mídias multimodais disponibilizam conteúdos técnicos e pedagógicos com muita didática, estética e dinamismo, incluindo animações 3D, mas é imperativo também reconhecer que grande parte dos dados presentes na web é fútil ou perniciosa. Quando estudante nos anos 1960, recordo-me de uma comunicação escrita sóbria, para não dizer sisuda; os livros, então dispendiosos, eram monocromáticos e com ilustrações contidas, além de textos densos.
Um estudo da Universidade de Harvard reforça o que é praticamente um consenso na neurociência: o uso excessivo de dispositivos digitais compromete áreas cerebrais como o córtex pré-frontal, responsável pela atenção e pela tomada de decisões. O impacto das redes sociais e de um conteúdo digital superficial na saúde mental e na capacidade cognitiva das pessoas fez com que a expressão brain rot (cérebro deteriorado) fosse escolhida como a palavra do ano de 2024 pelo Dicionário Oxford. Ela descreve a deterioração do estado mental devido ao consumo excessivo de material online trivial, privando o usuário dos benefícios de enfrentar tarefas mais complexas e envolventes, capazes de turbinar os neurônios e cuidar da saúde mental, minimizando-se os riscos de doenças degenerativas.
Em sua autobiografia (Código-fonte: como tudo começou), lançada em 2025, Bill Gates comenta que desde jovem costumava se refugiar em seu quarto, imerso em livros e reflexões — práticas que moldaram a sua capacidade analítica e visão estratégica. Ele hoje expressa preocupação sobre as novas gerações por passarem muitas horas diárias em atividades digitais.
Estudar, de forma profunda e
eficaz, ainda exige um espaço silente, uma mesa e uma cadeira. Como dizia, com
graça e sotaque alemão, um venerável professor de Matemática: “O aprendizado
entra ‘pelo bunda’ e sobe ao cérebro.”
Apesar da abundância de recursos tecnológicos e da ludicidade didática, uma verdade permanece imutável: o aprendizado consistente e duradouro requer autodisciplina, esforço e introspecção.
Para alcançar os píncaros do
saber, recorro à analogia do Cabo do Bojador, que tal qual o Cabo da Boa Esperança
foram símbolos de superação na tradição portuguesa, como bem eternizou Fernando
Pessoa: “Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor.” E há
êxtase. Há conquista. A dor transfigura-se em um doce sabor — o sabor do saber.
Jacir J. Venturi - foi diretor de escolas e professor e
Presidente do Sinepe/PR. Autor dos livros Da Sabedoria Clássica à Popular (em
dois volumes); Cônicas e Quádricas; Álgebra Vetorial e Geometria Analítica
(dispostos gratuitamente em www.geometriaanalitica.com.br).
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