"Cada vida
perdida para a violência de gênero é uma falha coletiva de nossa sociedade e
das nossas instituições", comenta a advogada criminalista Jacqueline
Valles
O Brasil tem uma lei exemplar para combater a violência contra a mulher e o assunto está sendo pautado pela imprensa de forma intensa nos últimos anos. Mas, apesar dos esforços, os índices de feminicídio, estupro e outras violências cresce ano a ano. O último Anuário de Segurança, divulgado em julho passado, mostrou que 1.467 mulheres foram mortas por razões de gênero em 2023, o maior registro desde 2015. O estudo revelou aumento nos registros de agressões em contexto de violência doméstica (9,8%), ameaças (16,5%), perseguição/stalking (34,5%), violência psicológica (33,8%) e estupro (6,5%).
Apesar de o senso comum apontar a ineficácia das
leis como uma das causas da violência contra a mulher, a jurista
Jacqueline Valles, mestre em Direito Penal e membro da Associação Brasileira
dos Advogados Criminalistas (Abracrim), afirma que o Brasil
vive um paradoxo com legislação avançada, como a Lei Maria da Penha, mas que
falha na implementação prática. "Temos leis robustas, mas o abismo entre a
letra da lei e sua aplicação é abissal. Medidas protetivas que deveriam ser
imediatas podem levar dias ou semanas para serem entregues aos agressores,
deixando vítimas expostas”, critica.
A jurista cita o brutal assassinato da jornalista Vanessa Ricarte, após buscar ajuda em uma delegacia de Campo Grande, como exemplo das falhas sistêmicas que persistem em colocar vidas em risco no Brasil. E aponta para problemas estruturais profundos, que vão muito além do Direito Penal: "Não é só falta de vontade, mas de recursos humanos. Delegacias, juizados e serviços sociais operam no limite, sem pessoal suficiente para a crescente demanda."
Enfrentar
a violência contra a mulher requer abordagem multidisciplinar
A advogada criminalista cita o machismo estrutural
como o combustível desta violência e reforça que falhamos em atacar a raiz do
problema. “Estaremos fadados ao fracasso enquanto tratarmos a violência doméstica
apenas sob o viés do Direto Penal. Precisamos de investimento massivo em
educação para desconstruir estereótipos de gênero e promover relações
igualitárias", comenta.
Estrutural
No atendimento a vítimas de violência, Jacqueline observa, na prática, o impacto do machismo estrutural na sociedade. “Muitas vítimas não são ouvidas e até mesmo respeitadas quando procuram ajuda da polícia. Há uma dificuldade enorme, por parte de agentes públicos, de enxergar violências que não são aparentes ou não deixam marcas, mesmo que essas condutas estejam previstas em lei. E isso está diretamente relacionado ao machismo. Muitas das vítimas que atendi relutam em buscar ajuda por causa disso”, comenta.
Jacqueline explica que a notificação e a
investigação são indispensáveis para melhorar o combate a qualquer tipo de crime.
Por isso, é preciso oferecer condições para que as mulheres se sintam seguras
para denunciar seus agressores. “Há uma necessidade urgente de treinamento para
autoridades reconhecerem formas menos visíveis de violência, como a psicológica
e patrimonial. E para qualificar o atendimento a mulheres que foram
violentadas”, acrescenta.
Atenção
multidisciplinar
A advogada criminalista reforça a necessidade de expandir o atendimento multidisciplinar às vítimas de violência e cita o exemplo da Casa da Mulher Brasileira, que prevê atendimento integral e multidisciplinar às vítimas. “É um modelo que funciona bem, desde que haja efetivo adequado para um atendimento integral e proteção eficaz", afirma.
A advogada reafirma que não se pode combater a
violência contra a mulher sem um olhar holístico para o problema, focando
apenas na questão criminal. "Cada vida perdida para a violência de gênero
é uma falha coletiva de nossa sociedade e das nossas instituições”,
completa.
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