A estrutura dimérica da enzima CelOCE agindo sobre as fibras de
celulose, representadas pelos bastões verdes
(figura: Mario Murakami/CNPEM)
Denominada CelOCE, essa
proteína natural foi obtida no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e
Materiais e pode ser incorporada imediatamente ao processo industrial.
Descoberta foi divulgada na revista Nature
A desconstrução da celulose é
fundamental para a conversão de biomassa em combustíveis e produtos químicos.
Mas a celulose, o polímero renovável mais abundante do planeta, é extremamente
recalcitrante à despolimerização biológica. Embora composta inteiramente por
unidades de glicose, sua estrutura microfibrilar cristalina, juntamente com sua
associação com lignina e hemiceluloses nas paredes celulares vegetais, a torna
altamente resistente à degradação. Como resultado, sua quebra na natureza é
lenta e demanda sistemas enzimáticos complexos. A desconstrução da celulose,
que, entre outros resultados, pode possibilitar um aumento significativo na
produção de etanol a partir da cana-de-açúcar, tem sido há décadas um enorme
desafio tecnológico.
Pesquisadores do Centro
Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em parceria com colegas de
outras instituições do país e do exterior, acabam de obter uma enzima que pode
literalmente revolucionar o processo de desconstrução da celulose,
viabilizando, entre outras aplicações tecnológicas, a produção em larga escala
do chamado etanol de segunda geração, derivado de resíduos agroindustriais,
como o bagaço da cana e a palha do milho. O estudo foi publicado hoje (12/02) na
revista Nature.
“Identificamos uma metaloenzima
que melhora a conversão da celulose por meio de um mecanismo até então
desconhecido de ligação ao substrato e clivagem oxidativa. Essa descoberta
estabelece uma nova fronteira na bioquímica redox para a despolimerização de biomassa
vegetal, com implicações amplas em biotecnologia”, conta à Agência
FAPESP Mário Murakami,
líder do grupo de pesquisa em biocatálise e biologia sintética do CNPEM e
coordenador do estudo.
A enzima recém-descoberta foi
nomeada CelOCE, a partir da expressão em inglês Cellulose Oxidative
Cleaving Enzyme. Ela cliva a celulose por meio de um mecanismo inédito,
possibilitando que outras enzimas presentes no coquetel enzimático prossigam o
trabalho, convertendo os fragmentos em açúcar. “Para usar uma comparação, a
recalcitrância da estrutura cristalina da celulose decorre como que de um
conjunto de cadeados, que as enzimas clássicas não conseguem abrir. A CelOCE
abre esses cadeados, permitindo que outras enzimas façam a conversão. Seu papel
não é gerar o produto final, mas tornar a celulose acessível. Ocorre uma
sinergia, a potencialização da atuação de outras enzimas pela ação da CelOCE”,
comenta Murakami.
Quebra de
paradigma
O pesquisador informa que,
cerca de duas décadas atrás, a adição das mono-oxigenases ao coquetel
enzimático constituiu uma primeira revolução. Essas enzimas oxidam diretamente
as ligações glicosídicas da celulose, facilitando a ação de outras enzimas. Foi
a primeira vez que se utilizou a bioquímica redox como estratégia microbiana
para superar a recalcitrância da biomassa da celulose. E isso definiu um
paradigma. Tudo que se descobriu no período foi baseado nas mono-oxigenases.
Agora, pela primeira vez, esse paradigma foi quebrado, com a descoberta da
CelOCE, que não é uma mono-oxigenase, e propicia um resultado muito mais
expressivo.
“Se acrescentamos uma
mono-oxigenase ao coquetel enzimático, o incremento é de X. Se acrescentamos a
CelOCE, obtemos 2X: duas vezes mais. Modificamos o paradigma de desconstrução
da celulose pela via microbiana. Achávamos que as mono-oxigenases eram a única solução
redox da natureza para lidar com a recalcitrância da celulose. Mas descobrimos
que a natureza havia encontrado também outra estratégia, ainda melhor, baseada
em um arcabouço estrutural minimalista que permite seu redesenho para outras
aplicações, como a biorremediação ambiental”, afirma Murakami.
O pesquisador explica que a
CelOCE reconhece a extremidade da fibra de celulose, instala-se nela e a cliva
de forma oxidativa. Ao fazê-lo, ela perturba a estabilidade da estrutura
cristalina, tornando-a mais acessível para a ação das enzimas clássicas, as
hidrolases glicosídicas. Um dado muito relevante é que a CelOCE é um dímero,
composto por duas subunidades idênticas. Enquanto uma subunidade se encontra
“sentada” sobre a celulose, a outra fica livre, podendo desempenhar uma
atividade secundária de oxidase, gerando o cossubstrato necessário para a
reação biocatalítica.
“Isso é realmente muito
inovador, porque as mono-oxigenases dependem de uma fonte de peróxidos externa,
enquanto a CelOCE produz seu próprio peróxido. Ela é autossuficiente, uma
máquina catalítica completa. Sua organização estrutural quaternária possibilita
que o sítio que não está engajado sobre a celulose atue como seu gerador de
peróxido. Trata-se de uma enorme vantagem, porque o peróxido é um radical
altamente reativo. Ele reage com muitas coisas. É muito difícil de ser
controlado. Por isso, em escala industrial, adicionar peróxidos ao processo
configura um grande desafio tecnológico. Com a CelOCE, o problema é eliminado.
Ela produz in situ o peróxido de que necessita”, sublinha
Murakami.
A CelOCE é uma metaloenzima:
esta é sua classificação exata, porque possui um átomo de cobre embutido em sua
estrutura molecular que atua como o centro catalítico propriamente dito. Ela
não foi criada em laboratório, mas descoberta na natureza. Porém, para chegar a
ela, os pesquisadores tiveram de mobilizar uma quantidade formidável de ciência
e equipamentos.
“Partimos de amostras de solo
coberto com bagaço de cana, mantido por décadas em uma área adjacente a uma
biorrefinaria no Estado de São Paulo. Nessas amostras, identificamos uma
comunidade microbiana altamente especializada na degradação de biomassa vegetal
usando uma abordagem multidisciplinar que incluiu metagenômica, proteômica,
enzimologia de carboidratos por métodos cromatográficos, colorimétricos e de
espectrometria de massa, difração de raios X baseada em síncrotrons de quarta
geração, espectroscopias de fluorescência e absorção, mutagênese dirigida por
sítio, engenharia genética de fungos filamentosos por CRISPR/Cas e experimentos
em biorreatores de planta-piloto de 65 litros e 300 litros. Fomos da prospecção
da biodiversidade à elucidação do mecanismo e chegamos à escala industrialmente
relevante em planta-piloto com possibilidade de aplicação imediata no mundo
real”, conta Murakami.
O pesquisador enfatiza que este
não foi um resultado de bancada de laboratório, que ainda precisa passar por
muitas validações antes de chegar à utilização industrial. A prova de conceito
em escala-piloto já foi demonstrada e a enzima recém-descoberta pode ser
incorporada imediatamente ao processo produtivo – o que é extremamente
relevante para o Brasil, como grande produtor de biocombustíveis, e para o
mundo, em um contexto de transição energética urgente em função da crise
climática.
O Brasil possui as duas únicas
biorrefinarias existentes no mundo capazes de produzir, em escala comercial,
biocombustíveis a partir da celulose. A tendência é que essas biorrefinarias se
multipliquem aqui e sejam replicadas em outros países. Um dos maiores desafios,
até agora, era a desconstrução da biomassa de celulose: como quebrar esse
material e convertê-lo em açúcar. A CelOCE deverá aumentar expressivamente a
eficiência do processo. “Atualmente, a eficiência está na faixa de 60%, 70%, podendo
chegar, em alguns casos, a 80%. Isso significa que muita coisa ainda não é
aproveitada. Qualquer aumento de rendimento significa muito, porque estamos
falando em centenas de milhões de toneladas de resíduos sendo convertidas”,
argumenta Murakami. E acrescenta que não se trata apenas de aumentar a produção
de etanol veicular, mas de outros produtos também, como, por exemplo,
biocombustível para aviação.
A pesquisa foi apoiada pela
FAPESP por meio de dois projetos (21/04891-3 e 22/03059-5).
O artigo A metagenomic
‘dark matter’ enzyme catalyses oxidative cellulose conversion pode ser
acessado em: www.nature.com/articles/s41586-024-08553-z.
José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/nova-enzima-capaz-de-quebrar-a-celulose-devera-revolucionar-a-producao-de-biocombustiveis/53930
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