sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

‘Máquina de nuvens’: emissões da floresta amazônica e descargas elétricas produzem partículas de chuva

Nuvens sobre a bacia amazônica: foto tirada
 durante um voo de pesquisa
 (
crédito:: Philip Holzbeck/Instituto de Química Max Planck)
Estudo publicado na Nature demonstra mecanismo que faz isopreno – um gás liberado pela vegetação – gerar grandes quantidades de aerossóis, responsáveis por formar núcleos de condensação; processo pode ter influência no clima global 

 

Um grupo internacional de pesquisadores, com destaque para a participação de brasileiros, conseguiu pela primeira vez desvendar o mecanismo físico-químico que explica o complexo sistema de formação de chuvas na Amazônia, com influência no clima global. Envolve a produção de nanopartículas de aerossóis, descargas elétricas e reações químicas em altitudes elevadas, ocorridas entre a noite e o dia, resultando em uma espécie de “máquina” de aerossóis que vão produzir nuvens.

A pesquisa, publicada hoje (04/12) na capa da revista Nature, descreve os mecanismos de como o isopreno – um gás liberado pela vegetação por meio de seu metabolismo – é transportado até a camada da atmosfera acima da superfície terrestre próxima da tropopausa durante tempestades noturnas. Uma série de reações químicas desencadeadas com a radiação solar dá origem a uma grande quantidade de aerossóis que formam as nuvens. Esta produção de partícula é acelerada por reações com óxidos de nitrogênio produzidos por descargas elétricas na alta atmosfera, em nuvens dominadas por cristais de gelo.

Até então, os cientistas já haviam identificado as partículas em outra expedição, mas não o mecanismo físico-químico completo. Acreditava-se que o isopreno não chegaria às camadas superiores da atmosfera porque reagiria ao longo do caminho, pois é bastante reativo, e se degradaria rapidamente com a luz solar. Com a descoberta desses novos mecanismos, será possível aprimorar modelos do sistema terrestre, ferramentas fundamentais para simular o clima e compreender o funcionamento presente e futuro do planeta.

Para chegar ao resultado, o grupo usou o material obtido durante o experimento científico CAFE-Brazil, sigla em inglês para Chemistry of the Atmosphere: Field Experiment in Brazil. Único desse tipo, o experimento realizou diversos voos sobre a bacia amazônica entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, a 14 quilômetros (km) de altitude, o que corresponde a duas vezes a altura do Aconcágua, ponto mais alto da América do Sul. Totalizou 136 horas de voo, cobrindo 89 mil km – mais do que duas voltas completas na Terra pelo Equador.

Aeronave de pesquisa do projeto CAFE-Brazil logo após a decolagem
 (
foto: Dirk Dienhart/Instituto de Química Max Planck)

“Um dos destaques desse trabalho é ver como a Amazônia tem uma simbiose de complexos mecanismos e importantes fenômenos que agem dentro de um sensível equilíbrio do ecossistema. A preservação desse equilíbrio permite manter as condições do clima como conhecemos atualmente. Alterações como as provocadas pelas mudanças climáticas ou pelo desflorestamento podem gerar efeitos inesperados e não estudados ainda”, explica à Agência FAPESP um dos autores brasileiros da pesquisa, o professor Luiz Augusto Toledo Machado.

Pesquisador do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) e colaborador do Departamento de Química do Instituto Max Planck, na Alemanha, Machado diz que o resultado abre um horizonte amplo para analisar o impacto do aquecimento global no clima, no meio ambiente e no ecossistema.

Para Paulo Artaxo, coordenador do Centro de Estudos Amazônia Sustentável (CEAS) da USP, professor do IF-USP e coautor do artigo, os resultados permitem realizar modelagens com mais confiabilidade, podendo incluir mecanismos do ponto de vista físico-químico e biológico.

“As emissões de isopreno dependem da floresta em pé. Elas não ocorrem se a vegetação nativa for substituída por pastagem ou cultura de soja. Com o desmatamento, esse mecanismo de produção de partículas é destruído, reduzindo a formação de nuvens e de precipitação. É o que chamamos de realimentação negativa no sistema climático total, pois o desmatamento traz redução de precipitação de maneira significativa por diminuir a evapotranspiração e a produção de partículas, que dependem das emissões de isopreno”, afirma Artaxo.

Levantamento divulgado pelo MapBiomas em outubro, com base em imagens de satélites, mostrou que pastagem foi a principal finalidade do desmatamento da Amazônia entre 1985 e 2023. No período, o crescimento dessa área foi de mais de 363%, passando de cerca de 12,7 milhões para 59 milhões de hectares. Com isso, 14% da Amazônia tinha virado área de pastagem em 2023.


O mecanismo

A floresta exala aromas muito característicos. São gases conhecidos como compostos orgânicos voláteis (VOCs, na sigla em inglês), entre eles o terpeno – grupo de substâncias encontradas em resinas de árvores e óleos essenciais – e o isopreno. Estima-se que as florestas em todo o mundo liberem mais de 500 milhões de toneladas de isopreno na atmosfera anualmente, sendo que um quarto dessa emissão vem da Amazônia.

Na floresta amazônica, o isopreno é emitido durante o dia, pois depende da luz do sol. Acreditava-se que o gás não alcançava as camadas mais altas da atmosfera porque seria destruído em poucas horas por radicais hidroxila, altamente reativos. “Agora, estabelecemos que isso é parcialmente verdade. Ainda há quantidade considerável de isopreno à noite. Uma parte significativa dessas moléculas pode ser transportada para camadas mais altas da atmosfera”, afirma em nota o autor correspondente do artigo, Joachim Curtius, professor da Universidade Goethe de Frankfurt (Alemanha).

Durante a noite, tempestades tropicais sobre a floresta ajudam a transportar gases, como o isopreno, para camadas mais altas por meio de convecção intensa. Semelhante a um aspirador, esse processo é impulsionado por correntes de ar ascendentes, especialmente em regiões com alta umidade e calor acumulado. Os gases se combinam com compostos de nitrogênio provenientes dos relâmpagos na alta atmosfera.

Nas áreas mais altas, entre 8 e 15 km de altitude, as temperaturas chegam a 60°C negativos. Cerca de duas horas após o sol nascer, os radicais hidroxila que se formam também nessas altitudes reagem com o isopreno, dando origem a nitratos orgânicos, compostos diferentes dos encontrados próximos ao solo. Produzem, assim, altas concentrações de nanopartículas de aerossóis, com mais de 50 mil delas por centímetro cúbico.

Essas partículas crescem ao longo do tempo e são transportadas por longas distâncias, podendo atuar como núcleos de condensação de nuvens. Influenciam o ciclo hidrológico global, o balanço de radiação e o clima. Os mecanismos de formação desses compostos nitrogenados orgânicos agora serão incorporados nos modelos climáticos, melhorando a previsão de chuvas, especialmente em regiões tropicais.

A FAPESP apoia o estudo por meio de um Projeto Temático vinculado ao Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e liderado por Machado e outro por Artaxo, além de outros quatro projetos (23-04358-921/03547-722/01780-9 e 22/13257-9).

Além dessa pesquisa, a Nature traz na mesma edição outro estudo desenvolvido por parte da equipe de pesquisadores que trata da nova formação de partículas a partir do isopreno na troposfera superior. Eles reproduzem em câmaras experimentais as condições presentes nessas altitudes, analisando em detalhe as reações desencadeadas pela luz solar.


A expedição

Vários voos de pesquisa realizados no experimento CAFE-Brazil contribuíram para a geração de perfis de altitude para diferentes gases. Foi possível medir massas de ar transportadas para a troposfera superior e as diferenças entre as situações diurnas e noturnas.

O professor Machado, que participou da coleta de informações na Amazônia, conta que os voos chegavam a ter duração de até 12 horas. “Virávamos a noite. Percebemos que as partículas se formavam de manhã. Por isso, saíamos de madrugada. As equipes iam para o aeroporto para voar, enquanto eu e outros pesquisadores ficávamos na sala de operações acompanhando e dando diretrizes das previsões e de onde estavam as chuvas. Eu também fazia voos que entravam nas nuvens para medir isopreno. Era bem emocionante”, relata.

A base de trabalho foi montada em Manaus (AM). Os voos eram realizados com o avião HALO (sigla em inglês para High Altitude and LOng range research aircraft), uma aeronave de pesquisa para longas distâncias (mais de 8 mil km), altas altitudes (até 15,5 km) e grandes cargas (até 3 toneladas). O experimento contou com a parceria entre a Universidade Goethe de Frankfurt, o Instituto Max Planck de Química (Alemanha), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – que foi responsável pela licença da expedição científica coordenada pelo pesquisador Dirceu Herdies, também autor do artigo –, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e a USP.

Recentemente, outro estudo liderado por Machado foi publicado na revista Nature Geoscience mostrando que a floresta é capaz de produzir sozinha aerossóis que, induzidos pela própria chuva, desencadeiam um processo de novas formações de nuvens e precipitação (leia mais em: agencia.fapesp.br/53265).

Os artigos Isoprene nitrates drive new particle formation in Amazon’s upper troposphere e New particle formation from isoprene in the upper troposphere podem ser lidos, respectivamente, em: www.nature.com/articles/s41586-024-08192-4 e www.nature.com/articles/s41586-024-08196-0.
 



Luciana Constantino
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/maquina-de-nuvens-emissoes-da-floresta-amazonica-e-descargas-eletricas-produzem-particulas-de-chuva/53490


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