À esquerda a posição do Aquífero Guarani no mapa da América do Sul; à direita cortes verticais, mostrando a configuração do relevo (imagem fornecida pelo pesquisador) |
O sistema, que atende a mais de 90 milhões de pessoas, está sendo superutilizado em diversas regiões do Estado de São Paulo. Pesquisadores empregaram isótopos estáveis para desvendar a relação entre águas pluviais e águas subterrâneas no abastecimento das nascentes
Estudo conduzido por
pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) mediu a contribuição
das águas pluviais e subterrâneas para a manutenção de nascentes e rios na
região de Brotas, na porção central do Estado de São Paulo, localizada na
sub-bacia do Alto Jacaré-Pepira, onde o abastecimento urbano, a agricultura e o
turismo intensivo dependem fortemente dos recursos hídricos. Os
resultados, divulgados na
revista Isotopes in Environmental and Health Studies, indicam que
as chuvas não conseguem repor toda a água do Aquífero Guarani que vem sendo
utilizada nas diversas atividades humanas, o que coloca a sustentabilidade do
sistema em risco.
Os aquíferos são as maiores
fontes de água potável do mundo. E o Guarani é o maior aquífero
transfronteiriço – isto é, que se estende pelo subsolo de vários países. Sua
área total, de aproximadamente 1 milhão de quilômetros quadrados (km2),
abrange trechos no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e na Argentina. Dois terços
estão no território nacional, alcançando os Estados de Goiás, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Nas partes centrais da Bacia
Sedimentar do Paraná, o Aquífero Guarani pode atingir espessuras de até 450
metros e situar-se a profundidades superiores a 1.000 metros. Ainda que a
quantidade de água doce seja descomunal – com um volume total armazenado de 30
mil quilômetros cúbicos (km3) e um volume disponível de 2 mil km3 –,
esse recurso natural, como tudo no mundo, também é finito, sujeito a
esgotamento e contaminação por poluentes. Daí a necessidade de estudos que
possibilitem compreender a fundo seus mecanismos hidrológicos, assim como de
ações de monitoramento do consumo e da recarga que permitam a adoção de
mecanismos de gestão que garantam o uso parcimonioso e a preservação. Sabe-se
que, em algumas regiões, o rebaixamento dos níveis da água subterrânea chega a ultrapassar
100 metros.
O Estado de São Paulo consome
cerca de 80% da água extraída do Aquífero Guarani no país. Dados de 2010
indicaram um consumo ainda maior, superior a 95%. Poços para abastecimento
urbano, em primeiro lugar, e para irrigação agrícola, em segundo, são os
principais fatores de redução do conteúdo líquido – o que, no contexto da atual
emergência climática, com períodos de seca severa, é algo a ser considerado com
muita atenção.
“Monitoramos as nascentes, os
rios, os poços e a chuva ao longo de oito anos, no período 2013-2021,
utilizando isótopos estáveis de hidrogênio [1H-2H] e oxigênio [16O-18º] como
marcadores da origem da água. Constatamos que cerca de 80% do volume de água
dessas nascentes é proveniente da descarga de águas subterrâneas do Sistema
Aquífero Guarani [SAG]”, conta Didier Gastmans,
pesquisador do Centro de Estudos Ambientais (CEA) da Unesp, no campus de Rio
Claro, coordenador do Laboratório de Recursos Hídricos e Isótopos Ambientais (Larhia)
e um dos autores do artigo.
Gastmans informa que, mesmo em
períodos de chuva intensa, a maior parte da água que alimenta as nascentes
provém do aquífero, com apenas 20% da descarga anual sendo devida à água da
chuva recém-infiltrada. Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores
realizaram um monitoramento detalhado da sub-bacia, acompanhando as variações
na profundidade do nível da água subterrânea, a quantidade de chuva e as razões
isotópicas da água das nascentes, da água da chuva e da água de um poço
profundo de monitoramento instalado na região.
“Os isótopos estáveis de
hidrogênio e oxigênio, constituintes da molécula da água, funcionam como ‘impressões
digitais’, que permitem identificar a origem da água. As amostras da água da
chuva apresentam uma grande variação nos valores dos isótopos, refletindo a
influência de diferentes processos atmosféricos sazonais. Já as amostras da
água subterrânea mostram uma composição isotópica muito mais constante ao longo
do ano. Algo bastante semelhante foi observado na água das nascentes, indicando
que elas são predominantemente alimentadas por águas profundas”, explica
Gastmans.
A homogeneidade das águas subterrâneas
indica que o aquífero não é afetado diretamente por efeitos de sazonalidade,
sendo essencialmente composto por uma fonte majoritária de água subterrânea com
contribuições bem menores da água da chuva. Por outro lado, o rebaixamento do
poço durante o período de monitoramento sugere que tenha ocorrido uma redução
das taxas de recarga, devido à diminuição dos volumes totais de precipitação e
ao aumento da evapotranspiração. Em outras palavras, o montante de água que
entra no aquífero por meio da recarga não está sendo suficiente para repor o
montante de água que sai do reservatório – o que é altamente preocupante.
“Sempre existiu uma falsa ideia
de que todas as áreas de afloramento do Aquífero Guarani fossem também áreas de
recarga para as regiões confinadas e mais profundas do aquífero. Mas nosso
estudo apontou que a recarga que ocorre nas áreas de afloramento contribui
fundamentalmente para a manutenção do sistema hidrológico local, ou seja, para
a manutenção dos fluxos dos rios e das descargas das nascentes. As águas
subterrâneas que estão sendo hoje superutilizadas nas várias modalidades de
consumo humano são, na verdade, bastante antigas. Como a datação com carbono-14
apresenta várias incertezas, realizamos em parceria com a Agência Internacional
de Energia Atômica um projeto no qual foi utilizado um outro traçador, um gás
nobre, o criptônio-81, que, associado a outro isótopo, o hélio-4, proporciona
valores muito precisos de idade. E detectamos idades variando de 2.600 anos, em
Pederneiras, até 127 mil anos em Bebedouro, 230 mil anos em Ribeirão Preto e
720 mil anos no Paraná”, conta Gastmans.
Sustentabilidade
O Aquífero Guarani abastece
cerca de 90 milhões de pessoas. Durante a estação seca, sua contribuição chega
a suprir 90% da descarga das nascentes. A exploração excessiva, combinada com
secas prolongadas no contexto da emergência climática, pode comprometer sua
capacidade de sustentar o fluxo dos rios e nascentes, exacerbando crises
hídricas como as que ocorreram entre 2014 e 2015 e, novamente, entre 2017 e
2021, no Estado de São Paulo.
“Compreender como o aquífero é
recarregado e a dinâmica entre as águas pluviais e subterrâneas é o primeiro
passo para garantir sua utilização de forma sustentável. Monitoramento em larga
escala e gestão adequada são os passos subsequentes”, conclui Gastmans.
O estudo recebeu apoio da
FAPESP por meio de dois projetos (15/15749-2 e 18/06666-4).
O artigo How much
rainwater contributes to a spring discharge in the Guarani Aquifer Syste
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/chuvas-nao-conseguem-repor-toda-a-agua-consumida-do-aquifero-guarani-alerta-estudo/53000
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