No final de Setembro tivemos a revelação estarrecedora de uma transferência de bilhões de reais de recursos do Bolsa Família para as contas das Bets, sites de apostas esportivas on-line. A geração que mais faz apostas dessa modalidade foi a Z (de 16 aos 27 anos), mas tem gente de todas as idades jogando o leite das crianças nas apostas . Os algoritmos são desenhados para superestimular os jogadores em busca do pico de prazer da aposta-expectativa-frustração e busca de recuperação do dinheiro perdido. Esse texto vai falar sobre esse círculo vicioso e seus efeitos.
O DSM V, manual diagnóstico e estatístico da
Associação Psiquiátrica Americana, já tinha classificado o Transtorno de Jogo
Patológico como uma Dependência Comportamental desde 2013. Isso quer dizer que
esse transtorno equivale a uma adicção semelhante (eu diria pior) a um
dependente de Cocaína ou Heroína.
Geralmente almoço na cozinha do meu consultório,
ouvindo resenhas esportivas de Youtube. Invariavelmente, elas são patrocinadas
pelos tais sites de aposta. O apresentador, algumas vezes, fala do patrocício
na Bet tal ou qual e faz uma observação: “Não se esqueça de jogar com
responsabilidade”. Para uma pessoa que tem esse transtorno, equivale a tentar
frear uma carreta na decida com o pé no chão, como o Fred Flinkstone. Mas,
perguntam os leitores aí do outro lado da tela: isso não é “só” uma questão de
força de vontade? Infelizmente, não.
A Neurociência vem demonstrando que instalar uma
Dependência no seu Sistema Nervoso é um processo de aprendizagem e reforço. Mas
tem um detalhe que o público talvez desconheça: esse aprendizado tem um efeito
nas suas expressões genéticas. Não são apenas as suas redes neurais que ficam
condicionadas e fissuradas pela próxima aposta: a manifestação de determinadas
populações genéticas também vão sendo modificadas nesse processo de busca
consciente e consciente das apostas. Como se o sistema ficasse programado para
repetir o comportamento, como a carreta na descida. Como todo processo de
dependência (note o leitor e a leitora que não estou usando a palavra “vício”,
que está em desuso e só reforça o estigma dos doentes), o Cérebro passa a viver
e trabalhar em função de buscar mais e mais uma dose, ou várias doses dessa
droga, no caso, fazer outra aposta.
Muita gente fala em aulas e vídeos, já que o
Youtube forma muitos neurocientistas todo dia, que a base dessa dependência é a
busca pela Dopamina, neurotransmissor associado ao prazer. Está errado em sua
concepção. No caso do Jogo Patológico, a Dopamina tem um papel muito mais
destrutivo e perigoso: ela é liberada na iminência do prazer. Na busca infinita
pelo prazer, diante de uma falta que nunca cessa. A Dopamina move as rodas do
Capitalismo. Você já ouviu que o melhor da festa é esperar por ela? Pois é. O
ditado está correto. A espera do prazer é mais potente que o prazer em si.
A iminência do ganho despeja um shot de Dopamina no
seu Cérebro Emocional, com uma euforia e sensação de superpoder que demora a
passar. Essa parte do nosso sistema é mais antiga e mais profunda em nossa
evolução e toma de assalto as áreas racionais. Por isso que tratar todos os
transtornos que envolvem compulsão, repetição e fissura são tão difíceis de se
gerar resultado e tão devastadores para pacientes e suas famílias: não é tão
incomum de se ver a perda de todos os bens, o endividamento progressivo e o
desmoronamento de toda vida econômica e afetiva dos dependentes, levando a
divórcios, violência e suicídio no meio dessa ciranda devastadora. Como toda
droga, o jogo patológico se cronifica na medida que a pessoa passa a usar essa
droga para combater seus efeitos deletérios: como um alcoolista bebe logo cedo
para diminuir os efeitos da abstinência, os jogadores buscam na próxima aposta
recuperar o dinheiro perdido.
Freud descreveu, há mais de cem anos, a dualidade
de Eros e Tânatos em nossas psiques. A dualidade entre as forças que alimentam
e vida e o instinto que busca, inconscientemente, da própria aniquiliação: o
Instinto de Morte. O Jogo Patológico parece o reino de Eros, com prazer,
excitação, divertimento. Costuma terminar em seu oposto para uma parcela da
população, com perda, dissipação e aniquilamento da vida pessoal e familiar.
Estamos na Era dos Excessos. Isso vai criando
muitos caminhos para Eros acabar virando Tânatos. Não adianta, apenas, levantar
bandeiras contra os jogos e sites de apostas on-line. Precisamos de uma
Psicoeducação profunda, precoce, sobre algo que os gregos presavam muito, que é
a justa medida. Estamos numa civilização em que a compulsão é o motor do lucro
e a Regulação Emocional virou uma piada.
Temos que ensinar Regulação Emocional na escola. E mandar muitos marmanjos para a Recuperação.
Marco Antonio Spinelli - médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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