Na mídia, nas instituições de ensino, na política, nas conversas de bar, enfim, seja onde for, a expressão “empoderamento feminino” tornou-se, praticamente, um mantra. Creio que a maioria das mulheres, em geral, sem muita reflexão sobre o tema, chancele o jargão, já que, ao menos à primeira vista, traz a sensação de ser elogioso ou quiçá, um presságio de algum tipo de revolução em prol da ala feminina do mundo. A sensação de angariar poder é, inegavelmente, boa. A minoria, por sua vez, que critica o termo, em que pese o ordinário verniz de erudição, parece ter, igualmente, em regra, pouco respaldo em argumentos e pensamentos meticulosos. Repetem-se, indiscriminadamente, os mesmos chavões. Por exemplo, certa vez, assisti a uma entrevista concedida por uma repórter famosa em que ela dizia não gostar da “palavra empoderamento feminino” porque conferiria a impressão de ser necessário que o poder fosse outorgado às mulheres, o que seria falacioso, pois já o deteríamos. Sem adentrar na minúcia acerca da coerência deste fundamento (ou de outros igualmente vagos), questiono a sua relevância prática. Para mim, discutir se as mulheres estão, hoje, empoderadas, se já eram detentoras de poder ou se esse poder lhes foi outorgado por alguém deveria vir muito depois de compreender, afinal, o que é poder para nós, mulheres.
Evidentemente, quanto a isso, há respostas fáceis e
prontas. Existe, claro, o óbvio. É natural que ter poder abranja ter direitos,
como direito à liberdade, à autodeterminação, à igualdade, à integridade
(física, psíquica e emocional), à saúde, à educação, à livre iniciativa e,
sobretudo, à dignidade. Entretanto, um olhar minimamente atento revela que
esses direitos não se estendem para além dos direitos básicos inerentes a
qualquer ser humano, independentemente de gênero. Penso que ser titular de um
verdadeiro poder seja muito mais do que ter e poder exercer direitos básicos.
Vejam, não estou contestando a incomensurável relevância teórica e prática de
garantir que as mulheres sejam, efetivamente, titulares destes direitos e que
possam exercê-los plena e integralmente. O que afirmo é que lutar para que as
mulheres sejam titulares de direitos básicos e que possam os exercer não se
confunde inteiramente com sermos detentoras de poder. Ter direitos e poder
exercê-los é apenas pré-requisito, quiçá, uma porta de entrada para o poder.
Misturar estas ideais, creio eu, está muito mais associado com uma perspectiva
claramente política do tema. Afinal, esse enlace conceitual de assuntos (ainda
que acintoso) leva a uma clara dicotomia capciosa: se os conceitos de poder e
titularidade de direitos se confundem, alguém a favor do tal empoderamento
feminino seria, automaticamente, a favor dos direitos básicos das mulheres, bem
como de seu exercício. Na contramão, quem negasse o empoderamento das mulheres
seria, então, opositor aos seus direitos e, assim, ratificador do machismo
estrutural, afrontando, no final das contas, os contemporâneos valores sociais
supremos do justo e do solidário.
Todas essas divagações que dão margem a tanta
elocubração ideológica e debates regados a pedantismo oco não me parecem, de
fato, impactar e tirar o sono das mulheres de carne e osso com que convivo. Não
nego, claro, que exista um percurso ainda longo a seguir na busca por outros
direitos relevantes e seu exercício, em especial, quando estamos diante de
classes menos favorecidas. No entanto, a verdade é que eu vejo, sim, ao meu
redor, as mulheres desfrutarem daquilo que já foi conquistado. As mulheres no
meu entorno, em sua grande maioria, estudam, têm empregos e carreiras, têm
liberdade (de ir e vir, de planejar sua família, de seguir sua vocação, de
manifestar suas ideias, de exercer qualquer profissão...), têm segurança
(aquela que é viável em um país como o Brasil por ora), têm acesso à saúde (às
vezes mais, outras menos a depender da condição social, não do gênero), têm
acesso à justiça (sim, o judiciário segue machista, mas este será outro
assunto), têm participação política crescente... Enfim, eu enxergo mulheres
detentoras de direitos de que não eram titulares outrora exercendo-os, de modo
geral, ainda que não em sua plenitude, já de maneira razoável. É inegável que,
sendo eu uma mulher de classe média alta, tenho mais acesso e familiaridade com
estas mulheres. Dito isto, não me atreverei a discorrer, logicamente, sobre uma
acurada análise social sobre o quanto mulheres de cada classe detém direitos e
desfrutam deles, mas arrisco dizer que, em menos de cem anos, houve progressos
colossais de que todas nós gozamos, graças ao que nossa vida é completamente
diferente da que viveram nossas mães e avós.
Todavia, ainda assim, ao me deparar com as mulheres
de hoje, que desfrutam de tantas vitórias, não vislumbro mulheres poderosas. Eu
enxergo mulheres exauridas, sobrecarregadas, solitárias (dentro e fora de
relacionamentos), viciadas em trabalho e ascensão, entorpecidas por
antidepressivos e ansiolíticos, assoladas por intensos sentimentos de culpa e
remorso (sobretudo em relação a filhos), enterradas em infindáveis sessões de
terapia por acreditarem que são problemáticas, frustradas por não atingirem
padrões de beleza inalcançáveis, dispostas a colocar a saúde em risco pela
silhueta ideal, entupidas de hormônios em busca do último suspiro de energia,
perdidas entre os tantos caminhos que a liberdade oferece, emocionalmente
frágeis e instáveis, pretensamente autossuficientes (quiçá, soberbas), confusas
quanto ao papel a desempenhar nos relacionamentos amorosos e na família,
obcecadas por juventude eterna, consumistas como se o seu valor dependesse do
que podem comprar, acumuladoras de funções supérfluas, prevaricadoras e
procrastinadoras de funções relevantes, altamente preconceituosas em relação
aos nossos próprios atributos femininos.... Talvez, tenhamos passado tanto
tempo invejando a supremacia dos homens que tenhamos, sem notar, internalizado
que atributos preponderantemente masculinos, como competitividade,
agressividade, inflexibilidade, racionalidade e independência são os que
definem o valor de uma pessoa tanto nas relações particulares quanto
profissionais. Em vista disso, relacionamos nossos atributos femininos, como
sensibilidade, empatia, intuição, flexibilidade e tolerância, com fragilidade e
vulnerabilidade e, consequentemente, com o risco de nova subjugação. Por esse
motivo, creio que estejamos nos espremendo para ocupar uma posição no mundo
que, embora seja nossa, deva ser preenchida da nossa própria forma, expressando
nosso poder pela nossa feminilidade. De maneira oposta, seguimos buscando poder
(na verdade, mais que poder, realização e felicidade) sob a perspectiva dos
homens, ignorando nossas verdadeiras necessidades e anseios.
Ouso dizer que usamos nossa liberdade recém
conquistada de forma irresponsável e inconsequente, enjaulando-nos em novas
gaiolas, de esponte própria, ainda mais difíceis de escapar dadas as suas
grades pouco evidentes. Sob a euforia desta liberdade, repetimos que “o lugar
da mulher é onde ela quiser”. No entanto, isso não significa que a mulher deva
estar em todos os lugares, dedicando-se, com excelência, ao número máximo de
atividades e funções que encontrar pela frente. Captamos o emblema, na prática,
como obrigação de onipresença. Decidimos abraçar o mundo sem pedir ajuda, sem saber
previamente se estavam dispostos a ajudar e, principalmente, sem reconhecer e
estabelecer nossos limites. Buscamos ser, ao mesmo tempo, a profissional de
alta performance com remuneração exorbitante, a mãe presente e pessoalmente
responsável pela gerência do lar, a esposa compreensiva, acolhedora e fogosa, a
esportista, a saudável, a capa de revista, a filha cuidadosa, a amiga
conselheira e pontual, a filantropa habitual, a ativista do meio ambiente, a
tutora de pet e, ainda, dormir bem, reservar momentos de lazer, ter
vida social e dedicar-nos a, pelo menos, dois hobbies. E, contrariando o bom
senso, sentimo-nos extremamente desapontadas conosco com o deslinde óbvio dessa
tentativa inócua, ou seja, o desempenho de todas ou, ao menos, de muitas destas
funções de forma medíocre ou o adoecimento inexorável. A ampliação de nossos
direitos não nos trouxe superpoderes ou nos transformou em malabaristas para
que estivéssemos aptas a equilibrar tantos pratos. Alguns sempre caem e, com
eles quebrados, temos também arranhadas nossas autoestimas prepotentes. Somos
uma geração doente de mulheres que se envenenou com o antídoto e estamos
criando uma geração de mulheres igualmente enfermas, tendentes a crer, em vão,
que tem capacidade sobre humana. Para romper o ciclo, é preciso que aprendamos
a escolher. Não é porque a comida está servida na bandeja que precisamos nos
empanturrar. Selecionar é difícil, pois implica não apenas renunciar, mas
também reconhecer os próprios limites. E escolher bem, significa, no fim das contas,
entender e perseguir o que realmente é valioso, do que, a meu ver, enquanto nos
comportarmos como crianças mimadas e birrentas que não querem abdicar de nada,
não seremos capazes.
Chego, assim, à conclusão de que não estamos
empoderadas, mas deslumbradas e entorpecidas com conquistas relevantes no campo
social, jurídico e político que, lamentavelmente, não serviram de alavanca para
que, de fato, alcançássemos o verdadeiro poder sobre nossas vontades, nossos
pensamentos, nossos ideais e nossas vidas. E continuaremos agrilhoadas na
caverna de Platão até que sejamos capazes de reconhecer e compreender o poder e
as verdadeiras necessidades de nossa essência feminina, bem como de fazer boas
escolhas e de ser resilientes em relação a elas. Possivelmente, quando, enfim,
nos alforriarmos, abandonaremos essa batalha inglória em que competimos com os
homens e passaremos a ocupar nosso próprio, devido e exclusivo lugar de
destaque e relevância na sociedade. E, assim, encontraremos o verdadeiro poder
e felicidade na paz que nunca sentimos.
Erika Cassandra de Nicodemos - advogada especialista em direito de família e sucessões, graduada pela Universidade de São Paulo, pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, mestre em Direito Privado Europeu pela Facultá degli Studi di Roma, mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, professora universitária.
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