“Algo não vai bem. Dá para sentir no ar. Qualquer coisa de suspeito está em algum canto”. Após a fala solene, foi à janela e gritou um “cala-boca” severo com os cães que não paravam de ladrar. Havia grandes e pequenos, eram quatro ou cinco e pelo menos dois eram desses que vêm de regiões frias. “É”, pensei comigo, “pobres animais, nestes beirando quarenta graus... Ladrando seu desconforto”.
Mas, todos
naquela casa amavam muito os cães. Seus três filhos bem nutridos, sobretudo,
declaravam amor aos cães, seja quando os vizinhos protestavam contra odores e
barulhos, seja quando ele mesmo tinha ímpetos de se livrar daqueles bichos aos
quais ninguém prestava muita atenção. Contudo, ele amava muito os filhos e os
filhos amavam muito os cães, então, fica assim. “Danem-se os cães.”
Algo não ia
mesmo bem. Atendeu ao telefone, alguém lhe queria falar, mas algum filho escuta
suas músicas em volume impeditivo. Não dava para conversar. Já se incomodara
noutro dia por causa desses “hábitos modernos”. E justificou-se: “Jovens são
mesmo assim, não vou polemizar”. Ele gritava, o sujeito com quem falava gritava
também. Notei que estava vermelho, vermelho além do normal.
Um pouco
tonto, pronto-socorro. No caminho, reclamou: “Esse mundo de ganância, isso
acaba com a vida. As coisas estão fora do lugar. Os políticos roubando, os
juízes roubando. Malditos ladrões. Impostos para sustentar essa corja; não há
dinheiro que chegue”. Exames. A pressão disparada. Prescrições médicas, causas
do estresse... Cuidaria, talvez, do assunto: “É de ver... A vida não para.”
A conta
telefônica. “O que é isso?” Alguém, como saber quem!? Mas, alguém naquela casa
gastara uma fortuna ligando para Conselhos Matrimoniais. Quem seria tão
insensato? “Malditas iscas da existência, maldito consumismo que explora até
fraquezas sentimentais.” Imprecou o capitalismo. Desabafou sobre o desrespeito
do mundo. Estava seguro: “Algo deveria ser feito, só não sabia o quê e nem
quem.”
À noite, a
pensar: “Só não vê a falta de nexo de tudo com tudo quem não quer enxergar.
Esses sinistros canibais humanos devoram tudo, devoram-se”. Não concluiu sobre
solução. Não dormiu em paz. Levantou-se cedo, abafado. Já havia algum tempo não
respirava bem. Devia ser a poluição do ar: “Todo mundo conspurca o planeta”.
Deu-se na rua. Ensimesmado em cogitações, circundou o quarteirão.
Parou na
frente da própria casa. Encontrou-se observando o lixo a ser recolhido. Pôs-se
a olhar os sacos com as sobras do seu dia. Tomou-se por uma vontade
descontrolada de vasculhar os detritos: “Quanto desperdício. As pessoas são
incentivadas a descartar, não refletem, não sabem quanto custa comprar as
coisas”. Acreditou que deviam educar as crianças do mundo, assim como ele
educou as suas.
Entrou,
serviu-se do que comer. Absorto, lerdo, mal ouvia o caminhão rangente moendo
seus entulhos, os cães ladrando, os familiares discutindo, o telefone tocando,
a obstinação da buzina. Uma dor desagradável no peito. Passado o susto, lembra,
acabrunhado: “Canalhas! Eu caído, eles discutindo sobre quem me levaria ao
hospital”. Aí, mordaz, acrescenta: “Maravilha! O mundo não é tão mau assim”.
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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