Ser mulher é
só para quem pode. Traz inúmeros desafios. Ser mãe igualmente. Ser mulher e
mãe, ainda por cima no Brasil, país que as desrespeita incessantemente, vai além:
requer força, resiliência e atenção o tempo todo.
Não é exagero. Veja esse dado: de acordo com pesquisa do Datafolha realizada em janeiro deste ano, metade das mães brasileiras é solo. Responsabilidades e tudo mais em dobro.
O quadro se
agrava quando elas saem em busca do pão de cada dia para os filhos.
Levantamento de 2022 da Condurú Consultoria aponta que 70% das trabalhadoras
que são mães têm dificuldades para se colocar ou recolocar no mercado.
Sem amparo, a
gestação e a maternidade podem se tornar aventura amarga. Amargor por vezes
descontando na bebida.
O consumo
pesado de álcool, ou seja, quatro ou mais doses, aumentou 4,25% entre as
brasileiras nos últimos dez anos – é o que aponta o Centro de Informações sobre
Saúde e Álcool (CISA), com dados do DATASUS 2021.
Mesmo
grávidas, há aquelas que não param de beber, seja porque não conseguem, porque
não querem ou porque não são devidamente orientadas.
Durante o
pré-natal, acompanhamento indispensável para que sejam prevenidas e detectadas
patologias maternas e fetais de maneira precoce, é comum que as gestantes
recebam dos médicos uma recomendação clássica: “evite beber”.
“Evitar” é um
verbo inexato, faço o alerta. Já escutei de diversas mulheres que o consumo de
álcool na gravedez não deve ser frequente, mas que uma tacinha de vinho ou um
copinho de cerveja, uma ou duas vezes ao longo de nove meses, não matará
ninguém.
É verdade, não
matará. No entanto, pode ocasionar o desenvolvimento da Síndrome Alcoólica
Fetal (SAF). A bebida ingerida pela mãe atravessa a proteção da placenta e
diminui a quantidade de oxigênio que o embrião recebe.
O
desenvolvimento cerebral e a formação óssea do bebê são, portanto,
prejudicados. Ao nascer e à medida que envelhece, ele pode apresentar anomalias
faciais, como fissura palpebral; restrição de crescimento, como baixo peso;
alterações de neurodesenvolvimento do sistema nervoso central, como
microcefalia; anormalidades comportamentais, como dificuldade de linguagem; e
anomalias congênitas, como problemas cardíacos.
A SAF
“clássica” é manifestação mais severa dentro do espectro de desordens fetais
alcoólicas, ou Fetal Alcohol Spectrum Disorders (FASD). Ainda que não se
enquadrem no diagnóstico completo da síndrome - que é complexo e não conta com
um exame laboratorial específico, dependendo majoritariamente da confirmação da
mãe quanto ao consumo alcoólico -, crianças com FASD enfrentam uma série de
tribulações na infância. Mais comuns do que as mudanças físicas são as
comportamentais, de atrasos de memória, fala e audição a dificuldades na
aprendizagem e no relacionamento interpessoal.
Pesquisas da
Academia Americana de Pediatria indicam que esses meninos e meninas têm vida
dura. Quando crescem, tendem a apresentar problemas de saúde mental e de
comportamento, como o desrespeito às leis, dependência física e emocional de
terceiros e consumo drogas.
No mundo, para
cada indivíduo com a SAF completa, estima-se que existam ao menos 10 com outras
desordens, isto é, de 1% a 3% da população.
Os dados no
Brasil não são sólidos, em virtude da subnotificação da doença, da complexidade
do diagnóstico e do aumento da ingestão de bebidas alcoólicas entre as
mulheres. Contudo, o Ministério da Saúde já chegou a estimar um caso para cada
1.000 nascidos vivos aqui. Não é pouca coisa.
Embora seja
possível garantir qualidade de vida às pessoas afetadas, as desordens fetais
alcoólicas não têm cura. Daí a necessidade de investir em informação para
evitar novos casos.
Nada de
repetir frases automáticas: os profissionais devem ser o mais claros possível,
enfatizando que não há nível seguro de consumo durante a gestação e que o
álcool pode mudar para sempre a vida do bebê e da família inteira.
Instituições
como a Sociedade Brasileira de Clínica Médica, a Sociedade Brasileira de
Pediatria, o Instituto Olinto Marques de Paulo (Iomp), a Associação Médica
Brasileira e Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
vêm trabalhando - permanentemente - para conscientizar a todos os médicos, aos
profissionais de saúde e às futuras mães.
A mídia também
tem aberto espaço para o tema ainda pouco discutido fora dos 9 de setembro,
data em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) destaca o Dia de Prevenção da
Síndrome Alcoólica Fetal.
Já a indústria
de bebidas tem de ser instada a adotar advertências sanitárias e embalagens
padronizadas sobre os riscos da ingestão de álcool na gravidez - a exemplo do
que faz a do tabaco, por obrigatoriedade disposta no artigo 11 da
Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT). O lucro das empresas não
pode atropelar o acesso à boa informação e a proteção às vidas que estão por
vir.
Além disso, é
tempo de nos perguntarmos o que tem levado mulheres grávidas a beberem cada vez
mais e investigar as raízes do problema. Um país saudável, como o que
queremos ser, é aquele que cuida dos filhos sem esquecer as mães.
Antonio Carlos Lopes - presidente da Sociedade Brasileira
de Clínica Médica
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