quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Ciclo do carbono durante o último período glacial pode ajudar a monitorar a crise climática

Coleta de um testemunho sedimentar marinho realizada
durante a expedição Amaryllis
(
foto: Thomas Kenji Akabane/USP)
Por meio da análise de sedimentos marinhos, estudo investigou as trocas gasosas entre os oceanos e a atmosfera. Aquecimento do Atlântico Sul provocou a liberação de CO2 aprisionado no fundo oceânico da região austral, apontam os autores

 

As trocas gasosas entre a atmosfera e os oceanos são um componente importante do ciclo do carbono, desempenhando papel vital na regulação do clima e na manutenção do equilíbrio ecológico do planeta. Estima-se que os oceanos absorvam aproximadamente um terço do dióxido de carbono (CO2) emitido pela humanidade. Por isso, compreender os processos complexos que regem essas trocas gasosas é de extrema importância – ainda mais agora, no contexto da crise climática global.

Um estudo recente investigou os processos que regeram os fluxos gasosos entre a atmosfera e o oceano Atlântico Sul no passado geológico recente. E revelou um marcante equilíbrio natural nas trocas de CO2, mesmo sob um cenário de mudanças climáticas abruptas. O estudo, financiado pela FAPESP, foi publicado na revista Global and Planetary Change.

“Investigamos períodos do passado geológico recente nos quais o clima global sofreu mudanças abruptas causadas pela redução da intensidade da Célula de Revolvimento Meridional do Atlântico [AMOC, na sigla em inglês]. Esses eventos são conhecidos como Heinrich Stadials (HS), em homenagem ao climatologista alemão Hartmut Heinrich, conta Tainã Pinho, autor correspondente do trabalho – fruto de seu projeto de mestrado conduzido no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGC-USP).

Como a AMOC é responsável por transportar substancial quantidade de calor do Atlântico Sul para o Atlântico Norte, uma redução na sua eficiência gera resfriamento no Atlântico Norte e acúmulo de calor no Atlântico Sul. Uma importante consequência do aquecimento da porção meridional do Atlântico foi o aumento da ressurgência marinha no oceano Austral, que circunda a Antártica. A ressurgência é a subida das águas profundas para a superfície. Sua intensificação fez com que o Oceano Austral liberasse grande quantidade de CO2, que estava aprisionada no fundo oceânico, para a atmosfera. Esse CO2 oriundo do oceano profundo possui uma “impressão digital” que permite distingui-lo do CO2 oriundo de outras fontes.

Toda essa história ficou, de certa forma, gravada nos sedimentos marinhos. “Nosso estudo foi baseado em análises de microconchas de foraminíferos planctônicos, preservadas em três testemunhos sedimentares marinhos. Dois deles foram coletados na costa brasileira, nos Estados de Alagoas e Santa Catarina, e o terceiro foi coletado ao largo da África do Sul. As análises das microconchas permitiram reconstituir e compreender um importante elo nas trocas gasosas entre a atmosfera e o Atlântico Sul durante os eventos HS”, diz Pinho.

Segundo o pesquisador, “as análises isotópicas realizadas e os resultados de modelagem matemática indicaram que o carbono oriundo do fundo oceânico é primeiro transferido do oceano Austral para a atmosfera e, posteriormente, entra em equilíbrio com a porção superior do Atlântico Sul”.

Essa compreensão foi possível mediante o estudo da composição dos isótopos estáveis do carbono presentes nas microconchas, que são formadas principalmente por carbonato de cálcio (CaCO3). Isótopos estáveis são átomos de um elemento químico que têm o mesmo número de prótons, mas números diferentes de nêutrons em seus núcleos, e não sofrem decaimento radioativo. No caso do carbono, processos naturais como a fotossíntese dão preferência pela incorporação na matéria orgânica de um isótopo em detrimento do outro. E, quando os organismos que produzem fotossíntese no topo do oceano morrem, eles afundam na coluna de água e sofrem degradação em grandes profundidades. Então, o isótopo que foi preferencialmente incorporado é novamente liberado para o pool de CO2 das águas do oceano profundo, gerando assim a tal “impressão digital”.

“A partir da comparação entre a composição isotópica das microconchas obtidas nos três testemunhos sedimentares marinhos e a composição isotópica do CO2 atmosférico registrada nos testemunhos de gelo da Antártica, pudemos concluir que o Atlântico Sul registrou aumentos do CO2 atmosférico durante os eventos HS”, afirma Pinho.

Os pesquisadores observaram excesso de um dos isótopos estáveis do carbono – mais precisamente do carbono 12, também chamado de “carbono leve” – durante os eventos HS. E essa é a “impressão digital” do CO2 do oceano profundo. As microconchas detectaram a emissão de CO2 com excesso de carbono 12 do fundo oceânico da região austral para a atmosfera que, então, entrou em equilíbrio com a camada superficial do Atlântico Sul.

“Esse equilíbrio não se limitou aos primeiros metros da coluna de água, mas alcançou profundidades de, pelo menos, 300 metros. Por meio deste equilíbrio, a ‘impressão digital’ do CO2 do oceano profundo foi transferida para a porção superficial do Atlântico Sul”, acrescenta Pinho.

Atualmente, existe um crescente grupo de evidências que indica o enfraquecimento, ou até mesmo o colapso, da AMOC até o final deste século. Além do aquecimento global em curso, isso poderá causar um aquecimento adicional do Atlântico Sul, repercutindo no clima planetário.

“Como a solubilidade do CO2 na água diminui à medida que a temperatura da água aumenta, o aquecimento pode reduzir a capacidade de os oceanos absorverem CO2, desconectando, pelo menos parcialmente, os oceanos da atmosfera. Esse importante desequilíbrio poderá ser rastreado por meio da composição isotópica do carbono do CO2 na água do oceano, de maneira análoga ao que foi feito no estudo aqui reportado”, comenta o professor Cristiano Chiessi, orientador da pesquisa de Pinho no IGc-USP e coautor do artigo.

A compreensão das bases e dos limites naturais do ciclo do carbono integrando a atmosfera e os oceanos no passado deve enriquecer os cenários sobre as mudanças climáticas em curso. O eventual desacoplamento entre esses dois importantíssimos reservatórios de carbono, a atmosfera e o oceano, é algo a ser monitorado com a máxima atenção. “A composição dos isótopos estáveis de carbono em foraminíferos planctônicos é de interpretação complexa, mas pode fornecer pistas relevantes para a compreensão de aspectos específicos do ciclo do carbono”, pontua Chiessi.

O orientador ressalta que, além das conclusões alcançadas, o estudo constituiu um notável esforço laboratorial, levantando novos registros de três porções distintas do Atlântico Sul, com mais de 940 análises.

O estudo recebeu financiamento da FAPESP por meio de três projetos (19/10642-618/15123-4 e 19/24349-9) e foi conduzido no âmbito dos programas de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA) e de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG).

O artigo Thermodynamic air-sea equilibration controls carbon isotopic composition of the South Atlantic thermocline during the last glacial period pode ser acessado em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0921818123001960?via%3Dihub.
  


José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/ciclo-do-carbono-durante-o-ultimo-periodo-glacial-pode-ajudar-a-monitorar-a-crise-climatica/44907

 

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