No universo dos streamings, é frequente o lançamento de produções que divertem enquanto jogam luz para temas necessários de crítica social, política, além de cultural, comportamental e ligado à saúde. Um desses temas atuais que têm ganhado as telas é a crise de opioides nos Estados Unidos.
Os opioides constituem uma categoria de
substâncias que ocorrem naturalmente na papoula, a mesma planta utilizada na
produção da heroína. Essas substâncias são receitadas para tratar diversos
níveis de dor, uma vez que possuem uma ação mais rápida, intensa e duradoura em
comparação com analgésicos convencionais.
Em Prescrição Fatal (The
Pharmacist, 2020), vemos a jornada de Dan Schneider, um obcecado
farmacêutico que busca compreender a morte do seu filho, assassinado em um
tiroteio. Ele começa a perceber uma quantidade anormal de pessoas que iam à
farmácia comprar opioides sob prescrição médica, vindas de um único
consultório, aberração que depois seria conhecida como de fábricas de
receituários.
Em Dopesick (2021), série da HBO indicada a 14 Emmys, um
médico preocupado (Michael Keaton) identifica alarmante aumento no número de
pacientes viciados em opioides em seu consultório. A ficção sobre um flagelo
real revela a história das ações judiciais enfrentadas pela Purdue Pharma e
membros da família Sackler, relacionadas à
prescrição excessiva de medicamentos farmacêuticos viciantes. Para os Sacklers vender opioides
somente para pacientes terminais de câncer era insuficiente para manter a
prosperidade bilionária da companhia Purdue.
Império da Dor, recém-lançada, mostra a perspectiva dos
visitadores médicos. As informações que os representantes da big pharma
recebiam e transmitiam a comunidade médica foram cruciais para a tragédia.
OxyContin, um narcótico classe II aprovado pelo FDA com rotulagem enganosa, foi
propagado como extremamente eficaz (era) e seguro (não era). O rótulo aprovado
inicialmente não tinha tarja preta e dizia que o potencial de droga adição era
menor do que 1%. A referência? Um “estudo” publicado na Inglaterra (Hershel
Jick, 1980) e replicado por incontáveis entusiastas da OxyContin. Na verdade,
era um relato de quatro linhas que dizia que opioides usados para 11.000
pacientes, internados em ambiente hospitalar (controlado), resultou em adição
0,03%.
O CDC, Centro de Controle de Doenças dos EUA, registrou
entre os anos de 1999 e 2021, quase 645 mil mortes em decorrência de overdose
envolvendo qualquer tipo de opioide. A terceira onda da epidemia, iniciada em
2013, mostra aumento exponencial de mortes por drogas prescritas ou fabricadas
ilicitamente, como tramadol e fentanyl. Estima-se que a cada sete minutos uma
pessoa perca a vida nos Estados Unidos por overdose de opioide, em áreas
urbanas ou mesmo em zonas rurais.
Trata-se de um desastre catastrófico. O aumento de violência
relacionada às drogas, como homicídios, roubos e tráfico são facilmente
vinculados a essa epidemia, e devastaram comunidades inteiras, a exemplo da
cidade de Williamson, na Virgínia Ocidental, hoje apelidada de “Pilliamson”,
numa alusão a quantidade de pílulas que circulam por lá. É uma das regiões mais
pobres dos Estados Unidos e tem a maior taxa de mortes por overdose no país.
Em Los Angeles, a Skid Row é considerada a maior
“cracolândia” do mundo. Pessoas em situação de rua ocupam aproximadamente 54
quarteirões da cidade, onde cerca de 4 mil indivíduos vivem nessa condição.
Esse número é mais do que o dobro da população em situação de rua na região
conhecida como Cracolândia, em São Paulo.
A Purdue foi fortemente cobrada pela sociedade, pela justiça
e pelo governo norte-americano. Em 2021, os Sacklers firmavam acordo coletivo
para pagar 3,5 bilhões de dólares, encerrando em um aglutinado de milhares de
ações judiciais. O acordo protegia a família de novos processos, através do
decreto de falência da empresa, mas foi suspenso em agosto de 2023 pela Suprema
Corte. A perlenga jurídica ainda se arrasta. E ainda que enfrente desafios nos
Estados Unidos e no Canadá, a empresa parece empenhada em superar a resistência
dos médicos em relação a opioides em todo o mundo. Sua filial internacional, a
MundiPharma, entrou no Brasil em 2013, como parte de uma estratégia global.
No Brasil, aliás, vale ressaltar, entre os anos de 2009 e
2015, a venda prescrita de analgésicos à base de ópio aumentou impressionantes
465%, conforme relatório da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
As séries mostram que os adictos começam sua jornada com
prescrição médica e migram para fábricas de receituários médicos e o comércio ilegal
de drogas lícitas. O fentanyl, usado como anestésico, agora é parte mais
nefasta dessa equação, com potência 100x maior que a da morfina. As primeiras
apreensões da versão ilegal da droga pipocaram no Brasil em 2023, acendendo
alerta nas paragens tupiniquins.
Especialistas em dor relatam as realidades no país:
pacientes graves, como os com câncer, não têm acesso a opiáceos, resultando em
tratamento inadequado da dor. Ao mesmo tempo, há um aumento de pacientes
dependentes de opioides, como a codeína, que buscam novas receitas. Já o vício
em fentanyl costuma atingir anestesistas e enfermeiros que têm acesso a droga
em serviços de saúde que atuam.
Entre bonificações, cupons de OxyContin gratuitos,
propaganda agressiva, a estratégia da big pharma foi um êxito
estrondoso, com lucros estratosféricos. Como não seria? Qualquer “fórmula de
lançamento” de uma droga com alto potencial aditivo tem tudo para se tornar case
de ‘sucesso’. O marketing que fideliza e a droga que vicia e mata.
As consequências catastróficas para a saúde pública que já
duram duas décadas batem às portas do Brasil. O momento exige cautela e atenção
dos atores envolvidos na área de saúde pública e privada do nosso país.
Claudia de Lucca Mano - advogada e consultora
empresarial, atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos
regulatórios. Fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação
Farmacann
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